A Simples Brisa Que Destrói o Castelo de Cartas

O dia estava bonito. Já fazia algum tempo em que o sol não aparecia. Com tanta chuva era difícil trabalhar no campo. Mas hoje não. Este era o dia ideal e afinal de contas o trabalho é para se fazer... Não se pode estar muito tempo à espera.
Teresa saiu de casa e foi tratar das batatas: enchada na mão, costas dobradas, força nos braços. Há muito que já se tinha habituado, mas custava sempre voltar, principalmente quando não é esta a ambição de uma vida. Principalmente quando se sente presa numa vida que não escolheu. Sabia que o seu lugar não era ali, mas sim numa outra profissão. Longe do dia-a-dia monótono e das pessoas que via todos os dias, na pequena aldeia.
Distraída com os pensamentos e com os movimentos mecânicos do trabalho, desde cedo aprendido, uma dor súbita atacou-lhe o peito. Uma dor forte que a fez largar tudo o que tinha na mão.

Raramente as pessoas prestam atenção, e não as podemos julgar por o fazerem, ao cabelo. Até é engraçado rapar o cabelo, fazer penteados fora do normal, ou simplesmente deixá-lo crescer. Mas como acontece com grande parte daquilo que faz parte de nós, só nos damos conta da importância das coisas quando as perdemos. O mesmo acontece com o cabelo.

Não falo num simples corte de cabelo ou mudança de penteado... É apenas o gosto pessoal de quem o quer cortar, ou porque condiz com uma certa moda. Falo noutro sentido. Quando se é obrigado a vê-lo cair, a desaparecer e a aparecer na nossa mão, quando apenas a passamos pela cabeça. Quando essa queda se dá pela violência a que se é submetido. Uma violência que não foi pedida, muito menos consentida, mas com a qual se é obrigado a viver. Uma mudança de penteado e a necessidade de querer chamar a atenção para uma mudança de visual aparece aqui como uma simples e inútil futilidade de que raramente nos damos conta.

O choque de se perder cabelo devido a tratamentos de quimioterapia é demasiado para quem tem de lidar com ele. Podemos pensar, simplesmente, "ele volta a crescer!". E volta. Mas existem pelo menos duas questões que são ainda mais aterradoras: será que se sobrevive para vê-lo crescer de novo? Será que mesmo depois de ele crescer tudo vai acontecer de novo?

Como no caso da Teresa, as doenças como o cancro da mama aparecem sem que se dê conta. Simplesmente se dá conta delas quando uma dor súbita nos ataca o peito. Aí não pensamos, agimos como forma mecanizada e fazemos o que o nosso instinto nos manda: hospital. Quando se descobre pode ser cedo, pode ser a tempo, pode ser tarde. Quando é cedo, menos mal. Quando é a tempo, é o mesmo que um sofrimento esperançoso (é recuperável, mas há mais probabilidade de o cancro poder reaparecer). Quando é tarde, é o sofrimento imposto.

Em qualquer um dos casos a quimio está presente e o primeiro sinal dessa presença é a queda de cabelo. O cancro esteve escondido tanto tempo, mas depois acaba por aparecer destas forma cruel, que despe estas mulheres sem o seu consentimento. E tudo isto sob o olhar de quem está por perto, vendo tudo a acontecer. Sem sentir o que sentem tantas Teresas, apenas observando o sofrimento de quem, mesmo assim, o tenta esconder de formas tão simples, como com o uso lenços ou de um chapéu.

Tal e qual como quando uma simples brisa derruba um castelo de cartas. Foi assim que se sentiu Teresa. Tudo estava normal, mas uma dor súbita mudou o que conhecia até então. Tudo cai perante isto. Tudo parece irrelevante. Tudo parece desnecessário.

Felizmente, Teresa tem hipótese de recuperar sem que lhe seja retirada uma mama. Mas é uma recuperação lenta, demorada e arrastada, cujo primeiro sinal vai ser a perda de um elemento que mais distingue as mulheres: o cabelo. Depois disso, é preciso refazer o castelo de cartas...

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