Somos aquilo que Recebemos dos Outros
Era já de noite quando saía do teatro. Pôs o chapéu na cabeça, aconchegou o casaco ao corpo e seguiu em frente, na rua que dava para um dos miradouros onde mais gostava de ir, principalmente depois de mais um dia de trabalho. Sentou-se num dos bancos livres e olhou para o rio. Encostou o seu braço ao banco e, com a sua mão, apoiou a cabeça.
"Somos aquilo que recebemos dos outros", pensou Eduardo. Era verdade. Desde muito cedo que mostrou que queria ser diferente daquilo que os outros esperavam de si. Queria fazer as suas próprias regras, tomar as suas decisões e criar o seu próprio futuro. Toda a sua família pertencia a um elevado estrato social com profissões de respeito: professores universitários, médicos e juízes. Foi-lhe imposto, desde criança, que também ele tinha de ser uma dessas pessoas. Teve uma educação rígida e horários bem definidos. Era na escola onde se sentia melhor: aí podia estar com outras pessoas e com os seus amigos, mas sempre tendo em conta quem escolhia para estar. Num colégio daquele tipo era fácil os pais ficarem a saber de tudo.
O seu percurso escolar foi exemplar. Cumpria à risca as normas e as ordens dos pais. No entanto, nem sempre as coisas corriam como eles queriam. Por um erro que cometesse, ele ou os seus irmãos, alguém tinha de pagar as contas. Em certas ocasiões, as situações de violência eram inevitáveis. Tudo para que percebessem que a ordem não pode ser perturbada e para, na cabeça do seu pai, que tivessem consciência dos seus erros. Eduardo chorou algumas vezes, perguntando porque é que as coisas não eram diferentes.
Porém, toda esta "educação" tornou-o obstinado, persistente e recto. Foi graças a ela que tinha aprendido a reerguer-se, mesmo quando pensava que não ia conseguir. Tinha sido ela a torná-lo teimoso e perfeccionista. Não falava com os seus pais sobre a sua vida, porque tinha os seus amigos para o fazer. Não lhe era feito nenhum elogio pelo seu bom comportamento na escola e a questão era: "se tiraste 17, porque não chegas aos 20?"
Depois do secundário, o seu futuro estava traçado: direito. O objectivo, mais concretamente, era chegar a juiz, tal como o pai. Frequentou o curso superior de Direito, e foi aí que um amigo pensou que ele poderia ser um bom actor. Apesar da sua educação rígida, era bem disposto. Brincava com todos e adorava fazer imitações. No último ano de Direito, sentia que tinha chegado a altura de tomar as rédeas da sua vida. Por se ter tornado numa pessoa disciplinada, que não sabe o que são facilidades e com convicções muito fortes mudou de direcção. No último ano do curso, decidiu fazer alguns cursos de teatro. Chegou a terminar o curso de Direito, mas logo de seguida decide ingressar numa escola para estudar teatro. Um escândalo. A família não conseguia aceitar esta opção e foi difícil. Afastou-se e para regressar à sua casa de infância foi preciso algum tempo.
Os anos passaram e, apesar de agora ter dois filhos o espírito impulsivo e rebelde que o caracterizava não o deixou ter alguém ao seu lado. Errou e depois de alguns actos inconsequentes, a mulher que amava estava agora com outra pessoa. Para Eduardo restava a sua solidão. Teve vários relacionamentos: uns com mais tempo, outros com menos. Mas não conseguia deixar de olhar para eles como meros acasos. Tempo passado sem significado.
Tinha-se tornado numa pessoa mais fechada e reflexiva. Tinha batido no fundo várias vezes e isso dava-lhe alguma sabedoria. Mas, por mais que quisesse, não conseguia alterar o seu carácter peculiar, construído ao longo de toda a vida e por aqueles com os quais se tinha cruzado: disciplina, rebeldia, exigência, impulsivo, inconsequente, consciente, bravura, teimosia e honestidade.
"Os princípios são a única coisa que dá consciência às pessoas", dizia ele, várias vezes. E essa consciência ele queria sempre tê-la. Tudo para que, no final de cada dia, pudesse olhar e pensar em tudo o que tinha feito desde o início de cada manhã: todas as suas acções eram justificadas, não se arrependia e as suas decisões tinham sido as melhores, sempre sem a sua consciência pesar. Tudo para que conseguisse ser uma pessoa melhor. Neste momento. era a única coisa que pretendia para a sua vida. Se o tivesse que fazer sozinho, ele aceitava-o. Afinal de contas, ele nunca gostou desafios fáceis.
Comentários
Enviar um comentário