Revolta Muda
Todo o dia com barulho. Dentro do escritório, no prédio, na rua.
Mas, o pior é passar o dia do trabalho. São muitas vozes, muitas responsabilidades e injustiças sucessivas. As pessoas demonstram todos os dias que é impossível confiar seja em quem for.
As horas parecem dias. O tempo está parado e não se consegue avançar. A ameaça iminente de que o meu dia a dia se vai tornar num pesadelo deixa-me exausta. Sei bem que sofrer por antecipação é dos piores erros que se pode cometer. Aquilo que tememos vai acontecer mais cedo ou mais tarde, por isso, quanto menos pensarmos nisso melhor será. Houve uma altura em que consegui fazê-lo. Mas a evidência de que a personificação da hipocrisia, da mentira, da cobardia e da malvadez vai voltar a mandar em mim deixa-me completamente desnorteada. E, depois, parece que tudo corre mal. Tudo. A minha relação com o trabalho, com os outros e comigo própria.
Tento todos os dias para que não seja assim. De manhã assim que acordo, ligo o rádio. Quando já é a hora limite para me levantar da cama, faço-o ao mesmo tempo que penso: "mais um dia igual". Porém, logo de seguida, afasto este pensamento e digo para mim própria: "Calma. Hoje vai ser melhor. Vou estar bem disposta para que tudo passe rápido e bem". E até consigo manter este espírito até chegar ao trabalho. Mas, por incrível que pareça, com o passar das horas o meu ânimo desaparece. Tal como quando temos areia na mão e assim que a abrimos ela cai, grão a grão. Ao final do dia estou insuportável, ainda para mais, com todas as contingências que o meu quotidiano implica. Ultimamente está pior. Bem pior... A presença de algumas pessoas transforma-me em algo que eu pensava nunca vir a ser. Uma pessoa amarga e sem sorriso, a quem nada parece surpreender nem entusiasmar. Quando oiço o nome daquela "personificação" que há pouco descrevi, ainda fico pior. Fico muda. É a única forma que encontro para expressar a minha revolta e o meu repúdio pela cobardia constante das pessoas. Pelo desinteresse, por perceber o quão vazias são as situações, que, anteriormente, para mim eram cheias de sentido. É uma desilusão tão grande que não conseguiria explicar a quem quer que fosse.
Quando são horas de ir para casa, fico com a sensação de que mais um dia passou, mas no qual estive a maior parte do tempo a tentar gerir todas as revelações e todas as verdades que me caem em cima.
A minha cabeça está muito pesada, novamente. Tão pesada, que só queria saber andar de olhos fechados até casa. Mas não. Faço mais um esforço. Depois de todo o caminho percorrido, chego finalmente. Assim que entro, por breves segundos fecho os meus olhos.
"Fecho a porta, penduro a minha mala no bengaleiro e vou até à sala. A casa está silenciosa, mas sei que ele está em casa. Na porta da sala, olho para o sofá e aí está ele a ler um livro muito concentrado. Bato três vezes na porta de madeira e os seus olhos azuis encontram os meus:
- Boa Noite! Que tal o dia?
Assim que ele repara bem na minha expressão não diz mais nada. Eu deixo cair uma lágrima e sento-me ao seu lado. Encosto a minha cabeça ao seu ombro e acabo por molhar a sua camisa branca com mais duas lágrimas. Ele nada diz e apenas encosta a sua mão ao meu cabelo. Num sussurro, apenas digo:
- Deixa-me estar aqui, assim. Só um bocadinho.
Ele abraça-me e, eu, acabo por adormecer".
- Então, o que estás a fazer aí parada em frente à porta?! - Abro os olhos num ápice. Claro. Estou em casa. Podia-lhe responder que estava a sonhar com uma realidade que não existe. Mas a minha mãe quer saber como foi o meu dia. Respondo que foi igual aos outros. As televisões estão ligadas e tenho de me controlar. Se mostrar alguma fraqueza são perguntas atrás de perguntas. Sei bem que é por preocupação, mas hoje apenas quero continuar sem nada dizer.
Porque já não tenho forma de explicar tudo isto.
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