A Mulher que Não Sonhava

- Porque é que estás sempre com ele? - pergunto, olhando para o fio que ele traz no seu pescoço.

Sem deixar de olhar para mim, ele sorri.
- Porque é que queres saber?

Encolho o ombro de forma quase imperceptível.
- Gostava de saber tudo de ti.

O azul dos seus olhos parece tão claro, quase como se conseguisse ver o meu reflexo.
- Achas que não sabes?

Fecho os olhos e sorrio levemente. Ele e a sua mania de me responder de forma tão vaga. Sinto um arrepio e estremeço. Viro a minha cabeça para o outro lado e abro os olhos. Olho para o chão e ali está ela. Ali está ela, à beira da cama, deixada ao acaso, como se ali estivesse porque o seu propósito estava já traçado desde o início. Deitada na cama, estico o meu braço e pego na camisa de flanela. Antes de a vestir, cheiro-a. Tem o cheiro dele, o mesmo que está impregnado na minha pele. Roço os meus lábios naquele tecido quente, ao mesmo tempo que sinto a barba dele no meu ombro, deixando os seus lábios viajar ao de leve pelo meu ombro.

Mexo-me um pouco de modo a que possa vestir a camisa, mas sem me levantar. Ele ajuda-me... ao de leve, ele ajuda-me a vestir a outra manga, não sem antes passar a sua mão pelas minhas costas desnudas.

Finalmente, tenho a camisa em mim, e sinto, de novo, o seu aconchego. Torno a virar a minha cara para ele.
- Há tanta coisa que não sei.

Ele torna a deitar-se, apoiando, depois, a cabeça na sua almofada ao lado da minha.
- Eu poderia dizer a mesma coisa.
- Verdade. Pergunta-me o que quiseres.

Ele sorri e chega-se um pouco mais perto de mim.
- Porque é que não dormes?
A pergunta é disparada, sem qualquer hesitação. Por certo, ele já estaria com esta dúvida há muito tempo na sua cabeça.

Não me desvio, nem movo o meu olhar. Quero que ele veja como me sinto encurralada por ele me fazer tal pergunta. Quero mesmo que ele me veja, sem fugas ou desculpas. Talvez seja por isso que não responda logo. Estou a tentar encontrar uma resposta... uma reposta de maneira a que ele me compreenda. Mas, porque raio tem de ser assim? Porque não posso dizer simplesmente aquilo que sinto, sem ter de encontrar outras palavras que ele possa entender?
 
O seu olhar sereno não muda. Continua ali à espera de que eu continue. Eu não fujo. Pelo menos, agora, não vou fugir.
- Eu não consigo sonhar. Será que vale a pena viver sem sonhos?

Agora noto que o seu semblante muda. Aquela preocupação está, novamente, lá. Aquela preocupação que quis apagar assim que chegámos a casa. A esta cama. 

Calo-me.
Não aguento aquela preocupação latente, que aparece sempre no seu rosto quando olha para mim. Queria poder perguntar-lhe porque é que ele está ali. Ninguém deveria estar ali, comigo. Assim não. Assim não consigo.

Fecho os olhos. Aquela realidade alternativa que conseguimos viver quando estamos nos braços um do outro está escapar-me e eu não quero assistir a isso. Por isso, fecho os meus olhos.

Sinto o seu corpo a mover-se do meu lado. Estará a preparar-se para se ir embora?
Espero.
Não.
Ele ainda ali está.
Ainda não foi desta.
E agora? Como saio deste beco?

- Representa aquilo que deixei para trás - abro os meus olhos. Ele está a olhar para o tecto, com a mão nas peças que o fio segura - Não me quero esquecer de onde venho. Nunca nos podemos esquecer de onde vimos, para saber onde estamos e para onde vamos.

O fio. O fio tem peças diferentes, é certo. Há muito que já o tinha notado. Não esperava, no entanto, de hoje obter uma resposta.

Depois de um momento de silêncio, ele volta a olhar-me.
 - Qual foi o teu último sonho?   
- Ter-te. Ter-te e que tu me levasses daqui.

Os seus olhos são maiores do que nunca. Agora, parecem que são do dobro do tamanho e ele foge de mim. Volta a olhar para o tecto branco e eu fico sem saber o que dizer. Na verdade, nada mais tenho a dizer-lhe. 

Num ápice, ele torna a virar-se na cama e chega-se perto de mim. Não me mexo, sentindo a sua respiração perto da minha face, o seu nariz perto do meu.
- Só voltarás a sonhar se não me tiveres?

A pergunta que me ele me faz, há muito que está na minha cabeça. Nunca soube lidar com este sentimento que me sufoca, com este amor que me tira tudo aquilo que tinha pensado, planeado, programado para os meus dias até que estes se tornassem em noite. Numa única noite.

Beijo-o. 
Beijo-o como se não o tivesse feito ainda há meia hora. Beijo-o sem parar, colocando a minha mão sobre a sua face... A sua face que consigo decifrar apenas com a palma da minha mão.
Ele não estava à espera.

Finalmente, paro.

Precisamos de respirar.

Suspiro.
- Deixa-me sem sonhos - sei que estou a rogar. Mas não me importa - Deixa-me sem sonhos - volto a pedir-lhe já com a voz trémula.

Agora é ele, com uma leveza extrema, sem o fulgor dos sentimentos, apenas com o fulgor de um único sentimento, o único que importa. Encosta os seus lábios na minha testa.
- Até que tu queiras. 

--------
NOTA: Esta história pode ser lida em continuação de uma outra que escrevi o mês passado e que podem encontrar aqui.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Posso dizer-te que Gosto de Ti?

A Dúvida da Certeza

Fura Vidas - Preciso de um Joca na Minha Vida