Cicatriz no Sentir
Existem alturas em que temos de aceitar o que temos. Há momentos no nosso percurso onde temos de aceitar aquilo que somos. Recordar aquilo que nos fez ser aquilo em que nos tornámos e pensar nisso vezes sem conta. Tantas vezes para que não nos esqueçamos do que somos e porque o somos. Na esperança de que este esforço nos permita chegar ao ponto de isso nos deixar de afectar ou revoltar. Na esperança de que o possamos aceitar definitivamente.
A revolta deve ser sentida o mais possível. Repetidamente. Tal e qual como a dor, para que assim nunca dos esqueçamos dela e para que nunca nos esqueçamos de qual o nosso objectivo no tempo que por cá andamos.
Não são só as coisas boas que nos mantêm vivos. Sem dúvida de que seria muito melhor se assim fosse. Mas na vida real isso não é assim. É talvez a dor que nos faz amadurecer. Uns mais cedo do que outros. E talvez seja também isso que nos permite estar revoltados. Dificilmente, conseguimos entender porque é que temos de sentir dor. Porque é que ela nos aparece sem avisar e por vezes aí fica... Um tempo indefinido até desaparecer, ou, noutras ocasiões, até nunca se desvanecer.
Uma criança quando cai por ser descuidada, ou por ser simplesmente isso, uma criança, fica ferida. Essa ferida sara e, mais tarde, pode deixar uma marca. Isso vai fazer com que da próxima vez, na mesma situação, a criança não seja tão descuidada para não cair e não se aleijar, simplesmente, porque vai lembrar-se do choro incessante da última queda... Porque sabe que vai doer. Por isso, ela aprende aquilo que deve ou não fazer. Não é porque olha para a cicatriz e se recorda do que aconteceu. Não. Não o volta a fazer porque se lembra da dor que sentiu. Anos mais tarde é que se dá conta daquela linha fina no seu joelho e isso fá-la recordar da queda, de como aconteceu.
Todos nós já passamos por uma situação parecida.
Durante muitos anos podemos não nos permitir a realizar algumas ações, porque sabemos que elas nos vão magoar, ou numa atitude mais altruísta, vão magoar os outros. Só mais tarde nos vamos dar conta de como isso nos moldou. Só mais tarde nos vamos aperceber da cicatriz profunda que isso nos deixou, na nossa consciência e no nosso sentir.
A vida não é uma série, não é um filme, não é um livro. É disso que nunca nos podemos esquecer. Que a vida não acaba sempre bem. Ela também pode acabar mal... Ou pelo menos pode acabar longe daquilo que queríamos. Pode terminar cheia de cicatrizes e sozinha na sua existência. Sem nunca confiarmos plenamente em alguém, sem nunca nos darmos verdadeiramente a conhecer. Mas, se não nos dispomos a dar-nos a conhecer, também merecemos esse abismo.
No final de contas, a vida é aquilo que fazemos dela. Boa ou má. Em última análise, tudo se vai explicar segundo aquilo que fizermos.
Se querem ser diferentes do que são mexam-se.
Se querem ser diferentes, mas as cicatrizes no vosso sentir não vos deixam, encontrem algum tipo de harmonia nas mais mais pequenas coisas que vos vão aparecendo no dia a dia. Só assim é possível sobreviver.
Se estão bem como estão, dêem graças por essa benção e sejam felizes.
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