Vulnerável VI
Em Novembro não se encontra muita gente na praia. O Estoril apresenta-se estranhamente calmo, com poucas pessoas. O céu está cinzento, mas não parece que vá chover. O vento é capaz de gelar as orelhas, mesmo assim, arriscamo-nos a ir para a areia. Esta é uma das raras vezes em que ele usa uma roupa de civil.
Deixou-me surpresa quando me acordou a meio da manhã e disse que era bom sairmos de casa. Ainda mais surpreendida fiquei quando vi as horas, passava das onze da manhã e vi-o descontraído. Afinal, era verdade, pelo menos o telefone não tinha tocado, ele estava mesmo fora da unidade hoje. Ainda pensei que isso mudasse até sairmos de casa e o toque de telefone desse o sinal de que teríamos de adiar o que quer que fôssemos fazer. Mas, ao contrário de todas as expectativas, o telefone não tocou.
O seu blusão castanho quase que o faz passar despercebido, no entanto, aos meus olhos, ele mantém uma feição inconfundível. Fixado no mar, o seu olhar está perdido e pergunto-me no que estará a pensar. Estamos sentados no areal, sem nos importarmos com isso. Encosto a minha cabeça ao seu ombro e deixo, também, que a minha atenção esteja nas ondas e no aroma do mar.
- Sim, sonho com a guerra - por um momento sustenho a respiração. Não esperava falar disto agora - Ontem fizeste-me a pergunta e eu não consegui responder.
Levo a minha mão à sua. Ambas estão frias, mas espero que ele me sinta. Depois, passeio os meus dedos até ao seu pulso. Volto a sentir uma leve cicatriz na sua pele.
- Sempre tive curiosidade por cada uma delas, mas no meio de tanta coisa... Acabei por não ter coragem de te perguntar...
- Essa foi da comissão que me fez regressar mais cedo - ele diz, secamente - As que tenho nos meus braços também.
- Há quanto tempo estavas unidade quando te reencontrei?
- Há algum... Tive de regressar porque em África tinham feito o que era possível, mas eu não podia ser reintegrado. Tinha os braços partidos e as queimaduras não seu curam do dia para a noite.
Não consigo evitar a pergunta que se impõe com uma força maior do que eu.
- Como é que isto aconteceu?
- Estávamos a fazer uma picada, a berliet foi apanhada numa mina. Acabámos por...
Silêncio. Os seus olhos piscam sem parar. Daquilo que lhe conheço, apenas o faz quando sente que não tem controlo sobre si.
- Chamas por todo o lado - as palavras saem-lhe pausadamente, parecendo que não está ali comigo - Deixei de sentir o que quer que seja, apenas via fumo à minha volta.
Coloco a minha mão no seu pulso.- Estava rodeado de... cadáveres. Chamei por eles, até hoje tenho a certeza de que gritei, gritei , gritei, mas não me ouvia... não me ouviam... Não sei sequer se conseguia falar.
Desço a minha mão até aos seus dedos.
- Não estás lá.
- Eu ainda estou lá! - Num reflexo irracional, largo-lhe a mão. Não esperava a sua voz precisa, grave, como um comando, não querendo deixar margem para qualquer dúvida.
Endireito-me para que possa vê-lo. Continua com o olhar perdido e eu tenho a mente em branco.
- Sabes como se matam galinhas?
Franzo o sobrolho. Olho para a areia e as lágrimas chegam-me aos olhos.
- Sabes ou não?
Volto a olhar para ele e vejo-o agora de olhos fechados, está branco como a cal, e eu já não sei se deveríamos ter chegado aqui.
- Pega-se no pescoço - sem conseguir evitar um leve tremor na minha voz - e com uma faca corta-se-lho - as últimas palavras saem num sussurro.
- Também os homens se matam assim.
O barulho das ondas do mar tomam o espaço por completo. Ficamos sem nada dizer e as minhas lágrimas caem em catadupa.
- Vi-os no meio do mato... aqueles que deviam ser o exemplo a seguir... os nossos superiores. Talvez o calor lhes tenha dado cabo dos cornos. Davam essas ordens e havia sempre alguém que as cumpria.
Ao de leve volto a passar os meus dedos pelo seu pulso, prendendo o meu olhar na pele massacrada que aí encontro.
- Antes disso abrem as covas. Mas muito ficaram assim na terra que queimava: corpo para um lado, cabeça para o outro.
Também ele matou dessa forma bárbara? Engulo em seco e retiro a minha mão do seu pulso. Levanto a o meu olhar e encontro o dele, fixado em mim. Quero saber. A sua expressão dura, tira-me a coragem de lho perguntar. Mas, como o quero saber. Na profundeza dos seus olhos espero que ele me compreenda.
- Não - diz-me, secamente e, por um instante, sinto alguma alívio inesperado e incontrolado - Mas não é isso que me retira dali... Não é isso que me impede de ser conivente com tudo aquilo.
A dor. O seu cenho fechado. A dor. A dureza com que mantém o silêncio a olhar-me fixamente. Lanço os meus braços ao seu redor. Tal como na primeira noite em que assisti ao seus pesadelos, abraço-o. Sinto-o completamente hirto, mas, mesmo assim, abraço-o. Ele parece-se com uma pedra de granito, mas eu sei que ele é um homem. Finalmente, sinto um pequeno movimento da sua parte, ele encosta a sua face ao meu cabelo.
- És um militar. Não o teres feito significa que não cumpriste uma ordem.
- Obedecer.
- E tu não obedeceste.
- Não. Recusei-me... - Desfaço o abraço - Bastava já as pessoas que morriam nas missões.
Em que homem se tornou ele depois da academia? Aqui, consigo ver que é ele, o jovem cativante de outrora que tinha ido para o exército com a expectativa de que isso o preenchesse de alguma forma. Mas, ao mesmo tempo, agora, parece-me que uma parte ficou lá longe, dando lugar a uma frieza que me faz não ter a certeza de nada.
- Não choras?
Tal como quando ele sonha com aquilo que viu lá, na terra quente, ele nada me diz. Apenas me olha com aquele distanciamento que me deixa completamente sem qualquer pista acerca do que ele possa pensar.
- Dizem que chorar lava a alma...
Ele solta um meio sorriso.
- Achas que a minha alma tem de ser lavada?
- Não sei, diz-me tu.
Ele deixa o meu olhar sozinho e volta-se para o mar. Faço a única coisa que sei. Volto a encostar a minha cabeça no seu ombro. Ele não me responderá.
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O frio de Dezembro quase que não se faz sentir no meio de todas as pessoas que se juntam à noite para expor aquilo que querem mudar. As assembleias populares formam-se um pouco sem ordem no tempo. Os panfletos expostos e que circulam entre as pessoas vão chamando os cidadãos às reuniões, seja no bairro, numa escola ou num pavilhão.
A Comissão de Moradores do bairro onde moro anunciou que hoje era necessário discutir mudanças nos arruamentos, nos poucos espaços verdes existentes e ainda arranjar num local onde pudesse fixar a sua sede. A primeira ideia, para este último problema, era ocupar uma loja fechada há vários meses. O meu trabalho no jornal tinha terminado, colaborava apenas nas comunicações escritas da comissão de moradores e tinha acabado de submeter a minha candidatura para trabalhar na universidade. Tinha, por isso, tempo para me dedicar a quem estava ao meu redor.
- Dizemos, por isso, que basta! Basta de estarmos reféns de quem tem tudo, de quem nos comanda a vida com a renda que cobra! Basta de ter casas vazias quando há gente, há famílias, que precisam de um teto para viver! - gritava, de punho fechado, uma das minhas vizinhas.
No encontro estava garantida a presença de alguns elementos do exército.
- E, mais do que isso: não podemos ficar sem um espaço para pôr mãos à obra. Os espaços existem, está na hora de os colocar ao serviço do povo!
As palmas soam de rompante. Descortino-o, ao fundo, junto das pessoas que falam para o público. É impossível não o ver, perto dos outros camuflados. Hoje está de boina. É assim: os militares estão ao serviço do povo 24 horas por dia.
- Está na hora de os colocar ao serviço da Revolução!
As palmas continuam assim como as palavras de ordem. Depois de alguns minutos de exaltação, o principal dinamizador do encontro assume o comando da sessão. Vejo-o a pedir aos militares presentes para dirigirem algumas palavras à população presente.
Admito que ouvi-lo deixa sempre algo de fascínio no ar. É um homem eloquente, o que o tornou num dos mais queridos daqueles que se têm organizado em comissões, em assembleias populares e outros movimentos. Muitas das vezes, os militares aparecem para dar algum alento aos grupos que se têm formado ao mesmo tempo que tentam ajudar naquilo que podem, sem comprometer as ordens superiores que têm.
A ocupação é certa, mas, alguém tentará, primeiro, chamar o proprietário à razão. As intervenções terminam e é tempo de toda a gente conviver um pouco.
Distancio-me um pouco dos maiores grupos de pessoas. Por momentos, pergunto-me no caminho que poderemos seguir.
- Também tu estás ao serviço da Revolução - as suas palavras, num tom baixo, despertam-me dos meus pensamentos.
- Não sabia que vinhas.
- Alguém me disse que era importante estar cá hoje.
- Como é isso possível? -
Talvez eu tenha deixado escapar que este encontro se realizaria esta noite.
- Digamos que tenho bons informadores.
Sorrio. Parece que está atento ao que digo, mesmo quando estamos no seu quarto perdidos nas poucas horas em que nos vemos.
- O que achas de tudo isto?
- Estão a organizar-se da maneira certa. Já fizeste a candidatura?
- Sim... Agora tenho de esperar que me respondam, mas da maneira como as coisas estão não sei se a universidade precisa de mais pessoas.
Ele passa-me um papel.
- Esta editora precisa de alguém que saiba escrever - leio o que está escrito: o nome e a morada da editora - Não pedi nenhum favor, nem apareci com nenhuma chaimite - sorrio e não escondo a minha surpresa - Mas, em conversa com um amigo soube disto. Não te recomendei, apenas tirei os dados e disse que alguém apareceria para se candidatar.
Estou capaz de o abraçar. Demoro-me no seu olhar e sorrio abertamente. Trabalhar numa editora era o cumprir de um sonho. Sei que não o devo fazer, mas, mesmo assim, ao de leve coloco a minha mão no seu braço.
Pormenor da Pintura "A Ressurreição de Lázaro" de Caravaggio (1608-1609)
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