Vulnerável IV

- Tens de ir, não há mais ninguém. Esta é a tua oportunidade.

- Mas que raio vou pra lá fazer?! - quando fico nervosa tenho o péssimo defeito de explodir por tudo e por nada... Ainda mais se me querem pressionar a fazer algo que não desejo. E estar perto daquela unidade é mesmo aquilo que eu não quero... de todo.

- É uma ordem. Não há aqui mais ninguém e só quero que vás perceber porque razão as pessoas se juntaram ali à volta da unidade.

Merda.

Porque é que me estão a colocar nesta situação? Há já algum tempo que eu queria sair daquele jornal e fazer outras coisas. Mas, vai-se lá saber porquê fui ficando... Mesmo a tempo de me colocarem nesta trapalhada.

Suspiro e aceno.

Olho para os papéis que estão na secretária de um outro jornalista que segue as ações do exército e leio o cabeçalho: "A Unidade Bombista". Congelo. Leio as primeiras linhas do rascunho e sei que o jornal vai publicar aquilo... Mesmo que só tenha ouvido um lado da história.

Em menos de nada, estou onde o jornal me queria. Quando lá chego vejo alguns grupos de pessoas, dos do costume, fico ainda mais zangada por estar ali. Ultimamente, é assim: a loucura está instalada e ninguém sabe o que está a fazer, parecendo que qualquer pretexto justifica um acesso de revolta. Estou junto à entrada e, antes de abordar alguns deles, oiço chamarem o meu nome. 

Viro-me e vejo o António Geraldo.

- Porque raio as pessoas ainda estão aqui? - pergunta-me, com as mãos na grade do portão.

Encolho os ombros - estão aqui porque... Porque isto está assim. Estão a querer dominar o vosso quartel e ninguém percebe bem o que se passa aí dentro - claramente, ele não percebe o que digo - Não é o mais ético da minha parte, mas tenho aqui uma coisa que penso que deveriam ver antes de ser publicada.

Abro a mala.

- Não. Não vou ver nada sem o comandante. Espera.

Fico sem perceber o que ele quer que eu faça, mas poucos minutos depois já estou dentro da unidade. Não quero estar ali muito tempo.

- Eu posso-te entregar isto e depois mostras a quem tens de mostrar.

- Não! Anda comigo.

Resigno-me. Pode ser que ele não esteja ali. Vou atrás do António por um caminho que não é o principal.

- Eu não vim para isto. 

- Não sou eu que tenho de ver isso.

Suspiro. Por corredores e mais corredores, chegamos onde eu não queria. António abre-me a porta do gabinete da pessoa que eu não vejo há semanas. 

- Entra e espera.

Quero protestar, mas o seu olhar não me dá margem para tal. Nunca o tinha visto assim, sempre se tinha apresentado como uma pessoa amável e bem disposta. Entro, mas deixo a porta aberta.

Contrariada, olho em redor e noto como a secretária está organizada. O seu bloco de notas está ali. O bloco de capa preta que ele traz sempre consigo. Concerteza que não vou ter sorte.

Em pouco tempo, confirma-se. Ele entra e fecha a porta de seguida.

- O que se passa? - viro-me na sua direção. Continua com um ar cansado. Ele coloca as mãos na cintura e fixa a sua atenção em mim.

- O Geraldo disse-me que tinhas algo do jornal.

Aquele olhar perscrutador é capaz de me deixar sem proferir uma palavra. Mas, não agora. Tenho de despachar isto.

- O António podia ter ficado com isto - tiro os papéis da mala e entrego-lhos - não percebo porque tive de vir até aqui.

Ele pega nos papéis e lê-os, atentamente.

- São uma cópia de um artigo que vai ser publicado na edição de amanhã. Poderá ter algumas correções, mas creio que, no essencial, a mensagem não vai ser alterada.

- Isto não é verdade.

- Não sei se é verdade ou não, o que as pessoas pensam é que isto está uma confusão.

- Isto não está uma confusão, nós temos a unidade sob controlo. Estes gajos estão infiltrados, mas aqui não fazem farinha.

- Deves preparar os teus superiores para o artigo.

- Estás a colocar-te em risco em me trazeres isto aqui. Alguém te viu?

- Pouca gente sabe que eu trabalho no jornal... Depois da recusa em falar contigo da outra vez estou a responder a cartas de leitores.

- O quê?

Encolho os ombros.

- O jornal quer estar junto do partido mais moderado, vão querer descredibilizar-vos.

- Merda - ele diz entredentes enquanto volta a ler os papéis e se dirige para perto da sua secretária.

- Bem, vou... Espero ter ajudado - viro-me para a porta.

- Tens a certeza de que ninguém te viu?

Suspiro.

- Antes de conseguir falar com quem quer que seja, o António chamou-me para dentro.

Silêncio. É o que preciso para me ir embora. Abro a porta.

- O médico diz que tenho os pesadelos porque me sinto seguro.

Paro. 

- Não me acontece frequentemente - ele continua e eu permaneço estática com a mão na maçaneta - só quando... - fecho a porta e viro-me para ele - a minha consciência se sente amparada.

O silêncio toma conta do espaço. Vejo-o ali, de braços caídos e, novamente, com aquela expressão vulnerável que lhe conheci da primeira vez que presenciei um dos seus pesadelos. 

Dou alguns passos na sua direção. 

- Se não tivesse vindo aqui, algum dia ter-me-ias dito isto?

Ele suspira - pensas que aquela conversa em minha casa poderia ter sido a última?

- Pareceste confortável com isso.

A sua expressão é algo que não consigo decifrar.

- Os pesadelos trazem coisas com as quais não posso lidar agora. E tu sabes isso.

- Eu não sei nada... O que posso saber eu sobre ti? Sobre o que lá se passou? Ou sobre o que se passa aqui?

- Conheces-me antes disto. Conheces-me antes de tudo, da guerra. 

- E ainda assim és um mistério.

- És a mulher que mais me conhece - as palavras saem-lhe rápido, de forma precisa, sem hesitações. Sem qualquer tempo para pensar nelas. 

Num ímpeto, abraço-o. Ao mesmo tempo sinto os seus braços a envolverem-me de forma forte e segura como já tinha acontecido algumas vezes. A minha cara afunda-se no seu camuflado até nos separarmos. Num impulso, ou não, beijamo-nos como se aquele fosse o nosso último suspiro.

Imagem: Pormenor de "A Deposição de Cristo" de Caravaggio

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Vulnerável I

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