Vulnerável III

As notícias foram circulando em catadupa. As pessoas protestavam, faziam patrulhas, o jornal estava em polvorosa... Fui percebendo que as coisas se tinham precipitado através dos meus colegas. Eu, agarrada à estúpida secção internacional, não conseguia acompanhar no terreno o que acontecia no país. Uma coisa era certa: tínhamos estado à beira de um outro golpe, mas alguém o teria evitado. Alguns dias depois, não podia crer naquilo que ouvia. Tinha sido ele. Tinha saído com os seus homens e, vai-se lá saber como, tinha conseguido resolver a situação. A preocupação que eu sentia por ele cresceu em demasia e fiquei pregada ao chão. Consegui dissimular junto dos meus colegas que julgavam que éramos amigos de longa data. 

Na realidade, talvez isso fosse o mais oportuno dizer sobre nós: conheci-o antes da guerra, já no exército enquanto estudava. O seu porte chamava a atenção das raparigas. Todas as que o conheciam ficavam maravilhadas com a sua forma de estar: era gracioso, idealista e, acima de tudo, gostava de se divertir. Além disso, tinha o dom de cativar pela forma como falava e se relacionava com as pessoas. Era fácil deixar-se ficar fascinada por ele, algo que ainda acontece hoje. Não aprofundámos a nossa intimidade. Ele lançava sempre uma graça de cada vez que me via quando ia esperar o meu primo, à saída da academia, para o fim do semana. Depois, fomo-nos encontrando ao redor da instituição militar. Alguns grupos formavam-se, encontrando-se à noite ou ao fim da tarde. As jovens juntavam-se e havia sempre forma de conversar. Desde cedo que o seu olhar jovial me prendeu a atenção e, com o seu porte, não era propriamente um homem que passava despercebido. Tinha o que não era fácil de encontrar: era bonito, bem falante e inteligente.

Quando partiu para a guerra, perdi-o de vista. Eu e o meu primo que, depois de regressar das suas comissões, tinha voltado para o norte para junto da família mais próxima. O nosso reencontro foi um acaso. Ainda no tempo da outra senhora, eu trabalhava para terminar a faculdade, estando como assistente da esposa de um oficial do exército. Por surpresa, encontrei-o, depois da sua segunda comissão, a recuperar na unidade comandada por esse oficial. Depois de as coisas mudarem, tudo se precipitou entre nós, sucumbido à urgência dos novos tempos de liberdade. 

O nosso passado passa-me pela cabeça ao mesmo tempo que oiço a mesmas perguntas vezes sem conta: "Sabes de algo?", "Falaste com ele?", "Tens forma de o encontrar?", "Até pode ser informalmente!" Tentei fugir a todas as questões, mas o chefe da redação, que também tinha ouvido falar desta nossa "amizade", incumbiu-me de averiguar o que realmente tinha acontecido. Recusei, sabendo que ao fazê-lo iria ficar relegada não para a secção internacional, mas para a secção dos passatempos.

No entanto, não mais deixei de lado a preocupação que foi crescendo dentro de mim e sem prestar muita atenção à minha razão, decidi ir até lá. Talvez pudesse... Vou usar esta desculpa de uma reportagem para o jornal para ter a certeza de que tudo voltou à normalidade e que, acima de tudo, ele não está em perigo.

Chego à unidade e, é claro, que me fazem perguntas. Por sorte, vislumbro um rosto conhecido. É o oficial António Geraldo, um dos seus camaradas mais próximos. Com a sorte a dobrar, ele reconhece-me e agiliza o necessário para me fazer entrar.

- Espera, António. Eu não quero entrar, na realidade só quero confirmar que... só quero confirmar algumas informações - ele franze o sobrolho - talvez até tu me possas ajudar.

- Eu não vou dizer nada. Ouve - ele coloca as suas mãos nos meus braços - Eu não sei o que se passou entre vocês, porque algo aconteceu, mas eu não posso estar a confirmar o que quer que seja. E também não te pod - passa um outro oficial por nós e ele pergunta-lhe - onde está o comandante operacional?

Aparentemente, tinha saído há algum tempo.

- É possível que tenha ido para casa. Estamos todos cansados e ele não sai daqui há uma semana.

- Tudo bem, se não me dizes o que pretendo, vou-me embora.

Despedimo-nos e saio da unidade. De certeza que o relato mirabolante que ouvi sobre a sua participação na ajuda ao governo foi verdadeiro.

Não sei racionalizar bem porquê, mas acabo à sua porta. Bato, não bato... Já cheguei até aqui, não vale a pena atrasar mais isto.

Bato à porta.

Não tenho resposta, talvez ele não esteja e este pode ser o sinal de que preciso para me pôr a andar.

Oiço passos e a mão na maçaneta. 

A porta abre.

Não o via há dias e por um momento fico a olhá-lo. Está exausto, de calças de pijama e camisola sem mangas. Deveria estar a dormir.

- Está tudo bem? - denoto preocupação? Não. Será surpresa. Sim, concerteza, não esperava ver-me ali, principalmente depois da última conversa.

- Olá - digo-lhe - espero não estar a incomodar.

- Não, claro que não.

Ele desvia-se para eu entrar. Aceito o convite implícito e fico no corredor. Ele fecha a porta.

- No jornal dizem que foste tu que resolveste a situação da semana passada.

- Estás aqui para me entrevistar? - ele vira-se e, por um momento, deixa a pergunta assentar. Vejo o seu antebraço com uma marca roxa. Antes de lhe perguntar o que tinha acontecido para ter aquela nódoa negra, ele continua - Pensava que estavas na secção internacional.

Podia mentir-lhe e dizer que sim. Que estava à procura de informações, mas não o consigo fazer. 

- Magoaste-te? - aponto para o seu braço.

Ele coloca as mãos na cintura e fita-me. O seu olhar perscrutador, onde já vi todo o tipo de sentimentos, é, agora, desprendido.

- Foi apenas um acidente... Magoei-me a fazer umas manobras, já esteve bem pior.

Aceno, mas rapidamente desvio o meu olhar do seu. Vejo um dos meus lenços no aparador da entrada. Inclino-me para o pegar e os meus olhos acabam por cair na porta entreaberta do seu quarto. Mesmo assim, facilmente vejo uma mulher nua na sua cama.

- Deixaste isso aí, estava à espera de que o viesses buscar.

Viro-me para ele.

- Não te queria mesmo incomodar. Podias ter dito que estavas com alguém e eu ter-me-ia ido embora.

O seu olhar volta a endurecer. Aparentemente, ele está mais do que bem.

Pego no meu lenço e dirijo-me para a saída, passando por ele. 

- Não te vim fazer uma entrevista. Falaram-me da tua ação na semana passada e queriam que viesse confirmar essa informação, mas recusei - alcanço a porta. 

- Então, o que fazes aqui?

A sua voz parece entrar-me no corpo. Suspiro. A razão que me impede de lhe mentir é, para mim, um mistério. Viro-me para ele e, por um momento, concentro-me no seu rosto. Para quem acabou de estar com uma mulher continua com o vazio no olhar.

- É uma boa pergunta, à qual não sei responder - indico para a porta do seu quarto entreaberta - Não a deixes ao frio.

Abro a porta e saio sem fazer barulho.

Não sei porque raio deixei-me iludir pela minha preocupação e cedi a vir até aqui.

Imagem: Natureza Morta de Eduardo Viana

Vulnerável I

Vulnerável II

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