Vulnerável V

A sua respiração junto ao meu corpo faz-me ganhar alguma consciência. Levo a minha mão ao seu cabelo e por aí passeio os meus dedos. O seus lábios junto à minha pele deixam alguns beijos, o que me acorda do meu torpor.

- É melhor vestires-te. Não vá alguém entrar.

Ele acena ao de leve.

- Não devíamos ter feito isto aqui - a sua voz baixa desperta-me ainda mais os sentidos. Ele tem toda a razão.

- Pois não...

Ele ergue-se e veste as calças, procurando depois pelo seu casaco. Ganho forças para me sentar na mesa e descer à procura da minha roupa no chão. Vestimo-nos em silêncio. Enquanto me volto a sentar na beira da secretária, vejo-o a pegar nos papéis que tinha trazido. Ele coloca-os junto a mim. Olhamo-nos por um momento e abraço-o. Ele corresponde, deixando-me segura daquilo que tínhamos feito.

- Apenas tive os pesadelos contigo. Nem quando estou sozinho, eu os tenho - fecho os meus olhos - isso deixou-me um bocado maluco e não soube... não sei bem lidar com isto.

- Não os tens com outras pessoas?

- Não.

- Isto é um problema?

- Eu é que o transformei num problema.

Encosto o meu queixo ao seu peito e os nossos olhos encontram-se.

- Eu não tenho medo de ti, nem dos teus pesadelos - digo de forma segura e ele acena - amparo a tua consciência... enquanto tu quiseres que assim seja.

A profundeza do seu olhar é adornada pelas lágrimas que lhe chegam aos olhos sem as poder controlar. Ele é, talvez, o homem que conheço que mais controla as suas emoções, excetuando aquelas que o fazem virar tudo do avesso quando luta por algo em que acredita. Os seus olhos marejados... A última vez que o vi assim foi nos dias a seguir ao bem sucedido golpe militar.

Ele deixa-me um beijo na testa. Se por um lado fico descansada por saber que o seu inconsciente confia em mim, por outro parece-me que isto seja demasiado para ele enfrentar. Mas porquê?

- Sonhas com o que viste na guerra?

Subitamente, sinto uma maior pressão da palma das suas mãos nas minhas costas como se a tensão lhe tomasse conta do corpo. Engulo em seco. Levemente, levo as minhas mãos ao seu peito e devagar chego ao seu rosto. A sua tensão não diminui. Tenho aí a minha resposta.

Antes de lhe poder dizer que estava tudo bem, batem à porta.

Em silêncio, desfazemos o abraço. Penteio-o com os meus dedos, antes de ele voltar a colocar a sua boina na cabeça. Desço da mesa e, rapidamente, ele vai abrir a porta. É um oficial mais novo que lhe diz que estão à sua espera. O homem vai-se embora e ele diz-me:

- Não saias daqui sem o Geraldo. Ele leva-te lá fora de forma segura - aceno - vai ter comigo hoje à noite. Se não derrubarem o governo, vou estar em casa.

Não sei se deva ir ou não, talvez tudo isto tenha sido demasiado e ambos precisemos de espaço. Ele segura-me nos braços e fita-me. Agora, sim, volto a descortinar o seu olhar jovial e prazeroso que conheci aquando dos seus vinte e poucos anos.

- Vou tentar - acabo por lhe dizer. Ele apenas acena e vai para a direção oposta à minha. Em pouco tempo, aparece o António e, rapidamente, por corredores e longe de outros olhares consigo sair da unidade.

--

Chego ao seu apartamento já um pouco tarde e, por breves momentos, recordo-me da última vez que aqui estive. Decido não me deixar incomodar por isso e bato à porta. Espero algum tempo e nada. Querem ver que o governo caiu e eu não dei conta? Tento uma outra vez e, logo de seguida, oiço barulho.

Devagar, a porta abre-se. Ele apresenta-se com umas calças mal amanhadas, cabelo desgrenhado e com olhos de sono.

- Estavas a dormir - sorrio. Fica sempre adorável com aquele ar desprevenido. Ele apenas acena e desvia-se para eu entrar. Assim que o faço, a porta fecha-se e, primeiro que eu possa dizer algo, sinto os seus braços ao meu redor e a sua face na minha nuca.

- Estou exausto.

Coloco as minhas mãos sobre as suas e caminhamos até ao seu quarto.

- Há quanto tempo não dormes em casa?

- Há algum.

Levo-o até à cama e ajudo a deitar-se. Passo-lhe a mão pela face. É um homem bonito, disso não haja dúvidas... Com um coração onde cabe o mundo, o qual não se prenderá a ninguém.

- Fica aqui.

- Uma senhora de bem não deve ficar até altas horas da noite fora de casa. 

- Estás com um major - diz, no meio de um sorriso - é respeitável - solto uma gargalhada - não te vás embora. Só preciso de dormir um pouco.

Deito-me ao seu lado e dou conta de como os seus olhos se fecham lentamente. Beijo-lhe o nariz, vendo o sorriso singelo que se forma no seu rosto. Sem fazer por isso, acabo por deixar que o cansaço também me vença.

--

Sou a primeira a acordar. É já madrugada. Levanto-me, silenciosamente, e vou até à casa de banho. É sem surpresa que quando de lá saio vislumbro que a cama está vazia. Oiço um barulho que vem da sala e vou até lá. Ele está à procura de algo no armário.

- Afinal não era apenas eu que estava cansado.

Encosto-me à ombreira da porta e cruzo os braços.

- Tem toda a razão, meu major - ele pega numa garrafa e em dois copos - sabias que um brandy só se deve beber no fim de uma refeição?

Ele vira-se para mim a sorrir.

- A única coisa que tenho na cozinha é pão... e deve estar duro. 

Maneio a cabeça e entro na sala ao mesmo tempo que ele enche os dois copos até meio. Ele oferece-me um e fazemos um brinde. Bebemos um pouco sem tirarmos os olhos um do outro. Afinal, gostamos de cumprir a tradição. 

Sento-me na poltrona e ele na pequena mesa à minha frente.

- Como ficou a situação do artigo? - pergunto enquanto dou outro gole.

- Estão todos alerta e um contra-artigo vai ser publicado num jornal grande... - aceno ao de leve - Que história é essa de estares com as cartas dos leitores?

- Bem, na realidade deixei de estar nessa secção.

Ele franze o sobrolho.

- Mandaram-te embora? - Aceno - Isto não pode ser assim. 

Bebo mais um gole.

- Pode, pode. Na prática não cumpri, novamente, uma ordem - coloco o copo na mesa - primeiro, recusei-me a fazer-te uma entrevista, depois fui para o regimento, entrei, fiquei lá duas horas e regresso sem nada para apresentar.

- Alguém lhes disse que entraste na unidade.

Encolho os ombros.

- Tenho de lhes fazer uma visita.

Coloco a minha mão no seu braço.

- Não vais fazer nada.

- Vou, vou. Isto não fica assim.

- Ouve-me - digo, seriamente - isto é um assunto meu e não quero que te envolvas.

- Estás enganada. Passa a ser um assunto meu quando te prejudicam por minha causa.

- Não foi por tua causa. Ouviste o que te disse antes? Eu é que me recusei a falar contigo sem qualquer justificação. Qualquer pessoa no meu lugar ter-te-ia entrevistado ou pelo menos tentado. A minha opção em não cumprir a ordem não tem qualquer justificação credível.

- Não somos animais para obedecer cegamente a ordens.

- Fala um oficial do exército.

- As coisas estão a mudar. As coisas estão a mudar para algo diferente.

- Estarão?

- Precisamos de afinar a disciplina. Mas, disciplina não é o mesmo que obedecer cegamente - suspiro - estás descrente.

- Não sei... Não sei se o exército vai aceitar tudo isso, é uma instituição demasiado hierárquica.

- A revolução não vai parar.

- Não quero ver chaimites ao pé do jornal - ele olha-me com desconfiança e eu aperto-lhe a mão - ouve-me nisto, por favor.

- Estás nessa situação porque me quiseste ajudar.

- Esquece isto. Eu já me queria vir embora, tinham-me relegado para fora do centro de decisão. Já te tinha dito isso há alguns meses. Sentia-me posta de lado por não ter conhecimentos ou ser influente. Apenas voltaram a olhar para mim porque souberam da nossa amizade.

- Como o souberam?

- Não sei, não faço ideia... Não falei disto a ninguém do jornal, mas... sei lá. Alguém nos pode ter visto nas assembleias populares ou nalguma campanha com os trabalhadores, nos plenários na universidade, não sei.

- Sempre quiseste escrever... desde os meus tempos na academia que me falavas sempre nisso.

- Lá por não trabalhar num jornal, não quer dizer que deixe de escrever.

Não me rebate. Espero que isto seja um bom sinal. Se ele aparecer perto do jornal vai ainda ficar mais exposto. Devido às funções que tem, já o é demasiado. Tudo está em polvorosa, não é necessária mais nenhuma confusão com a imprensa. Decido aligeirar o ambiente.

- Posso escrever sobre ti. 

Ele maneia a cabeça e, finalmente, esboça um sorriso.

- E o que dirias?

- És irascível.

- Deverias também dizer que sou um amante excepcional.

Solto uma gargalhada e encosto-me no sofá.

- Diria também que te tens em demasiada conta.

- Posso ser muita coisa, mas não sou mentiroso.

Maneio a cabeça e desencosto-me do sofá, sem deixar de o encarar.

- Concordo. Tens o coração na boca, mas mentiroso não és.

- Tantos defeitos... Já viste?

Aceno e sorrio. 

Ele bebe mais um pouco.

- O que vais fazer?

 Levo a minha mão ao seu rosto.

- Vou tentar falar com as pessoas do bairro, posso fazer algo por aí. Ou tentar algo na universidade, ir a mais plenários e ver o que consigo... não sei.

- Esses movimentos estão cheios de MRPPS. Tens de ter cuidado.

- Mais vale isso do que socialistas disfarçados. Eu conheço as pessoas.

- Ultimamente, já não se conhece ninguém.

Aceno ao de leve.

- Só temos uma amizade, hum? - ele pergunta, mas descortino o seu humor. Olho-o nos olhos e encosto-me ao sofá.

- Não sei, diz-me tu.

- Não - ele bebe mais um pouco - não bebo brandy de madrugada com qualquer mulher.

- Não sou uma qualquer mulher - aceno e bebo também - já é alguma coisa. 

- Convenhamos que... É mais do que alguma coisa.

Ele inclina-se e beija-me o joelho. Acredito que nunca saberei o que realmente sente ou como o sente. Procuro as horas no relógio de pé alto que tem na sala - é tarde. Devia ir.

Ele levanta-se, pega na minha mão para que o possa imitar. Antes de me deixar ir, abraça-me e beija-me de forma desprendida.

- Fica cá - pede-me, junto aos meus lábios - amanhã não vou pôr os pés na unidade. Temos tempo.

Imagem: "Amantes" - Desenho a Carvão de Almada Negreiros.

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