Capas Feitas de Fardos
Ela já não sabia quantas capas tinha sobre si. Usava tantas, com tantas pessoas e em tantas situações. Sempre. Ela estava sempre com essas capas sobre os seus ombros. E agora sentia-se demasiado pesada. Não é que se sentisse alguma vez completamente livre do peso dessas capas, mas, até há bem pouco tempo, tudo era mais suportável. No entanto, com o passar dos anos as coisas ficaram diferentes. O fardo tornou-se cada vez maior e, pela primeira vez na sua vida, ela não sabia como lidar com isso. Apenas tinha uma certeza: tinha de aguentar. Desistir não era opção. Ela era demasiado fraca para mudar, para mandar tudo às urtigas e começar tudo de novo.
Para começar tudo de novo, ela própria também tinha de nascer de novo e aí sim fazer tudo de forma diferente porque, com toda a certeza, o que teria à sua volta seria distinto do que aquilo que tem hoje. Talvez fosse por isso que ela gostasse tanto de imaginar que tinha tido outras vidas. Não tantas como dizem que um gato tem, mas pelo menos mais do que uma. Ela costumava dizer que era isso que justificava a sua forma peculiar de ser e de estar no mundo.
De facto, o seu jeito único, destrambelhado por vezes, tão envergonhada por dentro, mas por fora
com uma capa de dureza. Lá está ela... a capa... A capa da dureza era a última que tinha sobre si. Perante qualquer outro aparentava ser uma pessoa a quem nada fere. A quem nada magoa. Por outro lado, tinha também a capa da inocência e da tontice. Tudo lhe podia ser dito, tudo lhe podia ser feito, pois as pessoas pensavam que ela não se importava. Ela sabia que essas capas não impediam que ela própria não se sentisse uma hipócrita. Ela sabia que o era. Não tinha orgulho nisso, muito pelo contrário. Mas era uma realidade com a qual já se tinha habituado.
Ela estava acostumada a isso. A ser hipócrita para com os outros e para com ela própria. Afinal, como é que alguém pode viver diariamente com capas sobre capas se não for hipócrita consigo? É impossível. Só inventando desculpas e mentiras para se convencer a si própria para ter determinado tipo de acção é que lhe podia permitir ter essa mesma acção. Disso ela tinha vergonha, sem qualquer questão quanto a isso. Uma vergonha por não ser sincera e honesta. Sincera e honesta consigo própria e com os outros.
Os outros. Pensar sempre naqueles que estavam à sua volta. Essa era a única coisa boa de se ter tornado naquilo que era hoje. Uma coisa não tinha mudado desde que era criança: a sua vontade de colocar os outros acima de tudo. Eles eram o mais importante. Para ela, quando nos achamos um completo lixo e não temos mais esperanças naquilo que de bom a vida pode trazer temos de nos agarrar a isso. A ajudar os outros acima de tudo. "Algures pelo caminho conseguiremos sorrir genuinamente pela felicidade que têm aqueles que passaram por nós", diz ela. E talvez tivesse razão.
Porém, a fatalidade com que já tinha programado toda a sua vida levava-a, por vezes, a fazer-se valer dessas capas para se proteger. Na realidade, sempre com a premissa de que os outros estão em primeiro, ela fazia de tudo para que eles próprios se afastassem de si e dos seus problemas. Os outros eram demasiado importantes para que ela os deixasse aproximar e conseguir despir um pouco as suas capas. Eles não mereciam carregar com os seus fardos. Eles tinham que ser felizes e ela faria sempre de tudo dentro das suas possibilidades para que isso fosse possível. Para ela, poder mostrar aquilo que realmente era nunca seria possível. Levar a vida dessa forma fazia com que, por vezes, tivesse atitudes que ninguém compreendia. Se alguém se mostrasse preocupado, ela era fria. Era fria nas respostas e no olhar. Tinha a mesma reacção de como quando colocamos a nossa mão em cima de um cacto. A velocidade com que nos afastamos é uma reacção à dor da picada. Era com essa mesma frieza com que ela tratava quem se preocupava com ela era exactamente isso: um impulso perante uma ameaça. Alguém capaz de despir as suas capas era uma ameaça e aí ela fechava-se numa concha e aí ficava. À espera de que o interesse do outro passasse.
Quando ficava fechada na sua concha, ela tinha toda a certeza de que iria ficar assim. Sempre. Sozinha e fechada sobre si mesma. Apenas sairia da sua zona de conforto para ajudar alguém. Era sempre possível, para ela, amar alguém a partir de dentro da sua concha. Era, para si, até uma das formas mais genuínas de amor. Dar-se completamente para que o outro seja feliz, sem deixar que ninguém se aproxime. Ela sabia que a solidão seria o única caminho. Assim que aqueles que fizessem parte da sua vida começassem a seguir o seu caminho ela ficaria cada vez mais só. Era, aliás, a grande constatação dos últimos tempos. A contínua e progressiva solidão.
Nessa contínua e progressiva solidão, ela podia despir-se por completo e ser ela própria. E muitas vezes ela tinha chegado a perguntar-se: "de que vale ser eu própria se estou sozinha?". Aos poucos, ela começava a perceber que para manter a sua sanidade mental era exactamente disso que ela precisava: despir-se, pendurar as suas capas no cabide, e poder ser ela própria, nem que fosse sozinha. É claro que ela continuava a ter as suas condicionantes, como a possibilidade de ser livre.
De facto, a liberdade é mesmo algo que se constrói. Que se constrói com verdade. Se basearmos a nossa liberdade na mentira, se tivermos o mínimo de bom senso e de consciência, vai chegar a uma altura em que nos cansamos dessa mesma mentira. E esse cansaço faz com que desistamos e deixemos de lado a manutenção dessa liberdade. Por isso, a liberdade tem de ser conquistada com verdade e personalidade ao longo da nossa vida. Ela nunca tinha conseguido isso. E como nunca o tinha alcançado, nunca tinha tido essa liberdade.
A única forma de se sentir genuína era através da música. Só a música a transportava para uma outra vida, sem pesos, fracassos, fatalismos, fardos e hipocrisias. Quando ouvia as canções de que mais gostava, ela encontrava uma certa paz... Uma harmonia que fazia com que se esquecesse das capas que carregava. Estivesse onde estivesse, fosse com quem fosse. Aquela vontade de trautear a letra vinha ao de cima e nada a conseguia parar. Nem que cantasse apenas alguns versos entre dentes. Para si, essa era a melhor sensação do mundo. Pelo menos até a música terminar e aí ter de voltar a vestir os seus fardos.
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