O Papel de Espectadora da Vida

"Alguns seres nascem para viver, outros para trabalhar, outros para ver a vida.  Eu tinha um pequeno e mau papel de espectadora. Para mim era impossível sair dele. impossível libertar-me."  (in "Nada" de Carmen LaForet)


Empurra um. Empurra outro. Tropeçar. Encostar à parede para encontrar apoio. Seguir caminho. Encontrão de uma pessoa. Cara feia de outra. Ignorada por todos. As lágrimas escorriam pela face de Alexandra. O ocaso da rua era o melhor local para chorar. Ninguém via. Aí era ainda mais invisível do que em casa ou noutros locais do dia a dia. Quanto mais movimentado fosse o lugar, mais anónima se tornava. E isso era normal para si. Fazia parte.


Mais uma vez aquela jovem chorava. Se lhe perguntassem porquê, talvez não conseguisse verbalizar uma única razão, pois a tristeza era maior do que ela. Já não cabia em todo o seu ser. Tinha de sair e esta era a forma de a dor se expressar e instalar-se, também, fora de si. Sem saber o que fazer continuou a seguir em frente. Poucas coisas lhe importavam. Vivia para as suas obrigações. Eram elas que a mantinham viva, que a faziam levantar todos os dias. E Alexandra agradecia por isso. Pelo menos, os dias estavam ocupados, não era só esperar que eles passassem.

Parou perto de um jardim e sentiu o gelo da noite na sua face. Também isso a fazia sentir viva. Olhou em frente e deu-se conta de que também um casal estava naquele sítio. Sentados e abraçados para se aquecerem sorriam. Foi o som do seu riso que tinha focado a atenção de Alexandra para eles. Era uma imagem perfeita. Todos os dias Alexandra via pessoas a fazer coisas impensáveis para ter alguém, para não estarem sozinhas. Coisas que denotavam o seu desespero e ela achava isso abominável. No entanto, conseguia entender porque é que as pessoas faziam esse tipo de coisas. Aquele casal era a personificação da razão para isso. Quem não queria poder estar assim com alguém?

Também Alexandra sorriu, como tantas vezes sorria quando via a felicidade das poucas pessoas próximas de si. Era bom perceber que ainda existiam seres que se conseguiam encontrar. E ali, ela também cumpria o seu papel devido: o de espectadora. Via como outras pessoas conseguiam viver a sua vida. E isso era bom. Ter a prova de que outros viviam a vida e não a estavam a ver passar. Isso era demasiado duro e muitas vezes Alexandra desejava que aqueles que realmente vivem que o fizessem por todo o sempre. Que nunca perdessem a sua capacidade de fazer escolhas, a capacidade de ter sonhos, a oportunidade de nunca ter como única companhia a solidão. Que nunca perdessem a vida que tinham nas mãos.

Com aquela imagem perante os seus olhos, Alexandra parou de chorar. Fechou-os novamente e sabia que apenas via tudo negro, como sempre tinha sido. Tinha a consciência de quem em algum momento da sua existência tinha tentado libertar-se. Tinha tentado deixar de ser espectadora e agarrar a vida com as suas mãos. No entanto, de nada lhe tinha valido. Por uma razão ou outra, tudo a empurrava para a cadeira na fila principal para assistir ao filme vida, Tantas vezes que, simplesmente, tinha deixado de tentar. Era doloroso e impossível de sair desse papel.

Já não havia mais lágrimas para escorrer. Alexandra não sabia há quanto tempo tinha estado ali. Quando reabriu os olhos, o casal já não estava sentado no banco e ela sentiu vontade de se sentar e ali passar aquela noite de gelo de Dezembro. De se deixar ficar sem se importar com nada. No entanto, ela sabia que as obrigações que a faziam levantar todos os dias eram as mesmas que agora a impeliam para regressar a casa.

Novamente, como uma máquina controlada por alguém, não se sentou. virou costas e começou a fazer o caminho de regresso. Agora ia guardar a imagem daquele casal no seu coração para se lembrar que o mundo ainda tinha amor. Ela sabia que nunca teria a oportunidade de se partilhar totalmente com alguém, por isso queria guardar em si as imagens, como aquela, que ia registando para pelo menos saber como eram estas pessoas que viviam a vida.

Chegada a casa cumpriu toda a sua rotina e num raro momento sem obrigações, escolheu aquela música que a fazia sorrir pela sua alegria e ficou a ouvi-la. Como Alexandra gostava daquela canção! Era tão viva e, ao ouvi-la, ela estava noutro mundo, onde apenas os acordes e a voz do cantor existiam. Repetiu novamente a mesma faixa do disco. Era bom existir naquele mundo. Era tão bom aproveitar aqueles minutos... Ela sabia que assim que  a canção terminasse, tudo voltaria a estar no mesmo lugar e Alexandra regressaria à audiência do seu filme.

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Nota: Estou a acabar de ler o livro "Nada" de Carmen Laforet e quando me deparei ontem com a frase que está no início desta publicação, esta nunca mais me saiu da cabeça. Essa foi a razão que me levou a escrever esta história que a dedico a todos aqueles que passam pela vida sem a viverem, por razões que lhes são alheias. Sim. Porque isso acontece. Não acredito nas balelas que a maioria acredita, que basta queremos que tudo muda. Aquelas balelas um bocado à Gustavo Santos... Acreditem os espectadores da vida existem e eles também merecem ser lembrados.

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