O Regresso a Casa

"Pi! Pi! Pi! Pi!"
O despertador tocava, mas não acordava Marta, que estava já de olho aberto há algum tempo. Estava frio e a vontade em se erguer da cama era nula. Deixou-se ficar. Mas, por mais que quisesse, não conseguia descansar com a ideia contínua de que os cinco minutos a mais que ia ficar deitada estavam a passar demasiado depressa e que, mais cedo ou mais tarde, tinha de se levantar. 

Descobriu-se e pôs-se a pé. Estava completamente a dormir e deixou-se guiar pelas suas próprias rotinas, que o seu cérebro tinha já memorizado. Arranjou-se e foi trabalhar. No caminho para o escritório as boas memórias que tinha assaltaram a sua cabeça, como tantas outras vezes acontecia. Sorriu. Sabia ao menos que tinha sido feliz no seu passado. E, o mais engraçado, é que enquanto viveu esses momentos ela, por alguma razão que desconhecia, tinha a consciência de que esses seriam os melhores momentos da sua vida. Tentou ser positiva, pensado que, ao menos, tinha tido anos em que foi feliz. Mesmo assim, isso não foi suficiente para não deixar cair uma lágrima. Limpou-a para disfarçar. Afinal de contas estava na rua.

Este ia ser um dia difícil. Ela conseguia percebê-lo pela forma desmotivada com que caminhava, pelo imenso sentimento de frustração que a envolvia, pela tristeza com que cumpria as suas funções. E nisso, ela não se enganou. Suportar este dia tinha sido complicado. Por continuar a sentir-se como um enorme falhanço naquilo que fazia. Marta conhecia muitas pessoas, mas os amigos, esses que estão sempre em nós, contavam-se pelos dedos de uma mão. Porém, eles eram, em grande parte, aquilo que a fazia andar todos os dias.

Finalmente este dia acabava. Metade daquilo que tinha de cumprir não o conseguiu fazer. Não porque não o tentasse, mas, em grande parte, porque dependia de terceiros ou porque precisava de ajuda. E essas pessoas não corresponderam às suas expectativas, como sempre acontecia consigo.

Saiu do escritório e quis caminhar. Estava farta dos transportes públicos sempre cheios, do barulho infernal das estações e da má educação das pessoas. Queria ir pelo seu próprio pé, prestando, sempre, muita atenção às horas, porque Marta não vivia sozinha. Tinha de cumprir certas obrigações, porque senão teria de responder a questões e, cada vez mais, ela não aguentava as perguntas sucessivas. Até porque, a casa que sempre sentiu como sua, deixava de lhe dar esse conforto. Já mal conseguia tolerar faltas de respeito sucessivas. Há muito que tinha perdido uma capacidade que certas pessoas têm: a de esquecer tudo o que não interessa no dia seguinte. Por alguma razão, agora não o conseguia fazer. Apenas retribuía com silêncio. E, assim, ficava.

Era de noite enquanto caminhava pelas ruas de regresso a casa. Por si passou um grupo de miúdas com as mochilas da escola. Pelas horas deviam ir para casa. Elas falavam alegremente, sobre os professores, os colegas e aquelas parvoíces de que todos os adolescentes falam. Marta conseguiu rever-se naquele grupo de raparigas. Quantas vezes tinha ido para casa com as amigas, depois da última hora de aulas. Era isso que ela mais gostava: caminhar com as amigas até casa e só dizer disparates. Apesar de não ter tido uma adolescência absolutamente saudável, quando era miúda, era naquela altura do dia em que se sentia completamente livre.

Uma enorme saudade invadiu o seu coração. Fechou os olhos de repente deixando as memórias ficarem mais um pouco. Como se as conseguisse ver mesmo ali à sua frente.

Rapidamente despertou e continuou o seu caminho. "Disfarça, Marta. Estás a andar na rua", pensou. 

Subitamente, surgiu-lhe a pergunta: "e se tudo fosse diferente?". Marta foi respondendo a esta questão, enquanto se aproximava cada vez mais do seu destino. 

"Numa outra história, ela chegava a casa e estaria sozinha. O silêncio e a despreocupação fariam com que ela pudesse chegar à hora que bem quisesse. Iria cozinhar um coisa simples. O dia tinha-lhe tirado a fome. Sentaria-se no sofá da sua sala e veria um bom filme. Acabaria por adormecer a escrever no portátil e seria acordada pelo seu telemóvel. Um amigo ligava-lhe para irem beber um copo. Ela podia aceitar. Não teria de dar satisfações a ninguém. Feliz, levantou-se a correr, arranjar-se-ia e sairia no seu carro. No café iriam partilhar as suas alegrias, mas, também, as suas frustrações mais profundas. Perder-se-iam no tempo, sem perceber que era já muito tarde". 

Assim que viu a porta do seu prédio deixou de imaginar. Isso seria numa outra vida. Não nesta. Nunca nesta...    


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