A Coragem de Miguel e Maria

Por vezes é nas conversas à mesa onde se contam histórias. Histórias antigas que nos fazem cair na realidade, ou, por outro lado, simplesmente, sonhar... 

Portugal, Anos 60

- Eles não te vão perdoar. Nós é que temos de parar com isto. Cada um vai para o seu lado e acabou.
- Tem calma. Eu não quero saber daquilo que vai acontecer. Nós podemos fazer a nossa vida sem dar contas a ninguém!
- Mas eles são a tua família. Quem sou eu? Diz-me quem sou eu?! Onde é que isso já se viu: a empregada casar com o médico da família! Nós estamos loucos. Estamos loucos... 

Maria andava de um lado para o outro, como se precisasse de se mover para se fazer entender melhor. Mas aquilo que Miguel percebia é que, tal como ele, Maria estava petrificada com a ideia de se casar e enfrentar a sua família endinheirada e de prestígio. Ele percebia e partilhava consigo o medo. Esse sentimento que os fez prender os movimentos nos últimos meses. 

Mas Miguel já não aguentava fugir. Andar às escondidas. Ter sempre as raparigas das famílias mais abastadas da terra à sua perna. Ele estava farto disso, quando, na realidade, apenas queria estar ao lado da mulher que amava. Da mulher que o fez parar e olhá-la desde a primeira vez que a vira. Desde que tinha regressado dos seus estudos em medicina e de se ter tornado médico. Mas quem era esta jovem rapariga, empregada na casa dos seus pais? Essa tinha sido a primeira questão a sobressaltá-lo. Era isso que ele tinha de descobrir, porque ele tinha percebido, desde o primeiro instante que a viu entrar na sala, que ela tinha algo de diferente. Alguma coisa que a destacava de todas as outras. Ele não sabia se era a beleza, se era o seu modo discreto e tímido ou o seu olhar misterioso. 

O tempo foi passando e daí a trocarem algumas palavras não foi preciso esperar muito. Miguel foi percebendo que também não lhe era indiferente. O primeiro beijo foi o primeiro sinal de que Miguel não precisava de procurar mais nada. Tudo aquilo que ele queria para seguir em frente estava em Maria. O amor que os unia foi crescendo. Os encontros de madrugada no meio do campo, em pleno Verão, os encontros nas manhãs de Inverno junto à lareira, na cozinha, já acesa para aquecer a casa dos senhores. No entanto, Miguel queria mais. Maria também, mas ambos não sabiam como dar o passo seguinte. 

Nos anos 60, no Portugal rural, numa aldeia do Minho, onde as convenções sociais ditavam que os senhores casavam-se com os senhores e os empregados com os empregados, tornava toda esta história complexa e impossível de ter um bom fim. O pai de Miguel era uma pessoa austera. Presa à tradição de "boas famílias" em que tinha sido criado, preso aos costumes preconceituosos, que não deixavam que as classes sociais se misturassem. Os irmãos de Miguel eram importantes na aldeia. Com bom nome, muitas terras e muitos negócios e com casamentos que em nada iam contra à ordem vigente (como se ainda permanecessem na época medieval). E, para que estes fossem ainda mais respeitados pelos restantes, um destes irmãos era padre. A festa que a família lhe proporcionou quando este foi ordenado sacerdote surpreendeu toda a população desta aldeia e dos arredores, que ficaram abismados com a demonstração de poderio e riqueza desta família.

Por esta altura Miguel e Maria estavam juntos e sabiam que tinham de tomar uma decisão. Tudo ficava por ali ou seguiam em frente, contra tudo e contra todos. Miguel não a queria deixar sozinha. Maria não queria prejudicar Miguel.  Mas esta foi uma das situações em que o verdadeiro carácter das pessoas se revela.

Miguel olhou para Maria. Deteve-a e com as mãos sobre os seus ombros ficou a olhar para ela. Fechou os olhos e suspirou. Abri-os e, num ápice, deu-lhe um beijo. Um beijo longo e demorado que fez com que o coração de Maria parasse de repente. Ao ouvido disse-lhe: "Amo-te". Virou costas, saiu do quarto e foi direito ao escritório onde estava o seu pai. Entrou de rompante. Por fora parecia a pessoa mais calma do mundo, mas, por dentro, a adrenalina estava ao máximo. O pai estava com dois dos seus irmãos e, sem esperar para que dissessem muita coisa, Miguel proferiu as seguintes palavras, sem dar-se conta da velocidade com que lhe saíam da boca:
- Vou casar. Com a Maria.

Tanto os irmãos como o pai ficaram a olhar para ele, com a cara típica de quem não entende nada do que se está a passar. O pai, entre um sorriso, disse-lhe calmamente.
- Do que estás a falar? Essa Maria é de que família? Não me lembro de ninguém ter falado dela.
- A Maria não é de nenhum família da qual o pai esteja habituado a ouvir falar.
- Então quem é? Alguém da cidade?
- A Maria está muito mais perto do que a cidade.

O irmão, em tom de brincadeira disse:
- Oh! A única que está perto é a empregada, mas essa está fora do baralho. Ah Ah Ah!

De forma convicta, Miguel afirmou:
- Escusas de te estares a rir. Acertaste em cheio.

A notícia caiu que nem uma bomba. Os irmãos não reagiram e o coração do pai não foi forte o suficiente: enfarte. A mãe repudiou o filho, ao mesmo tempo que expulsaram Maria daquela casa. Miguel, solenemente, e com a maior certeza do mundo, saiu com ela. O dinheiro que tinha de parte era suficiente para organizar um modesto casamento, que nenhum padre queria fazer. Foram muitas as dúvidas e as angústias até que a cerimónia fosse uma realidade. Porque, depois de tanto procurar, um dos sacerdotes com quem tinham falado não lhes fechou a porta. Um deles não teve medo de cumprir o seu dever e casou-os. Para sempre, Miguel e Maria ficaram gratos a este Padre, que passou a ser o seu confidente e companheiro. 
Passados alguns meses, Miguel conseguiu abrir o seu próprio consultório na aldeia e fazer aí a sua vida, distinguindo aquilo que cobrava: os mais ricos pagavam mais e os mais pobre pagavam menos. Miguel era o único médico das redondezas e era competente. Mesmo não gostando, muitos dos senhores eram obrigados a recorrer à sua ajuda.

De forma modesta e honesta Maria e Miguel ficaram juntos, repudiados por uns, mas muito queridos por outros. Tiveram sete filhos e conseguiram levar a sua vida em frente. Os tempos mudaram, mas a história destes dois não. Permaneceu no tempo e ainda é contada como um exemplo de amor, coragem e bravura. Um exemplo de carácter que todos devíamos conhecer pelo menos uma vez na vida.

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NOTA: Esta história é baseada numa história verídica passada nos anos 60 numa aldeia do Minho e que ainda hoje é contada. Os nomes aqui expressos são fictícios e a história é romanceada. No entanto, os factos estão todos descritos e foram uma realidade.

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