Cyrano de Bergerac, por onde andas?

"Pois moralmente é que eu cá tenho os meus requintes.
No atavio não sou um franzidinho airoso,
e mais cuidado ando, ao ser menos vaidoso;
não sairia com, por certa negligência,
afrontas por lavar, e ainda a consciência
amarela de sono ao canto de seu olho,
e a honra amarrotada e escrúpulos de molho.
Ando sem nada em mim a transluzir beleza,
independência só, por plumas, e fraqueza;
não é pela estatura a meu favor que brilho,
é pela alma erecta e como em espartilho;
como fitas enlaço os meus feitos e pode
meu espírito alçar-se tal como um bigode;
e faço, a atravessar os grupos e as rodas,
como esporas soar minhas verdade todas.

(...)

Luvas não tenho... ora que grande azar!
Restava-me uma só... e era de um velho par!
A qual de resto, a mim, só me fazia dano:
e por isso a deixei na cara de um fulano."  (Rostand, Edmond, Cyrano de Bergerac, Lisboa, 2007, Bertrand)

Escolhi este trecho como podia ter escolhido tantos outros. Cyrano de Bergerac é, sem dúvida, uma das últimas criações que li e que mais me marcou. Pelo traço exímio e exemplar da personagem principal que me foi criado pela excelente representação do autor desta peça de teatro do século XIX, Edmond Rostand. 

Quem me conhece sabe que não consegui parar de fazer referências a este homem, que, apesar de aqui ser uma personagem, existiu, de facto, no século XVII, em França. E foram tantos os motivos: os momentos de riso, a partir da sua honestidade, frente aos seus inimigos, resmungões e "snobs" do seu tempo; a sua frontalidade e forma jocosa com que dizia as verdades na cara de quem muito bem entendesse. Por vezes, chegamos  a pensar que Cyrano é louco, por ousar proferir certas palavras sem nenhum pudor. Mas ele é assim (perdoem-me, parece que estou a referir-me a alguém de carne e osso), gosta de viver no limite, porque sabe que se pode defender e que a sua espada nunca o vai deixar mal. Enfrenta quem não lhe agrada e não vira costas a um bom combate, ou a um confronto frente a alguém a quem quer dar uma grande lição.

Mas este Cyrano de Bergerac não é um super herói distante, que nos faz tê-lo como alguém superior, por ter o seu chapéu de plumas, a sua capa e a sua espada, adereços que utiliza para deitar por terra as injustiças e a presunção. Este Cyrano de Bergerac é homem. Tem alguns amigos, trava conhecimentos e tem defeitos. Quantos mais não sejam, o seu nariz enorme. "Defeito" esse, que o faz ainda mais distinto. Porque foi para sobreviver a esse "defeito", que Cyrano se transforma na pessoa dura, persistente e sem medo que é.

Para além da amizade, que dá a dimensão humana a esta personagem é o amor que o torna ainda mais real. O verdadeiro amor que sente por Roxane torna-o próximo de qualquer um de nós e faz com que nos reconheçamos nos seus medos e hesitações, que tantas vezes a paixão nos provoca. Mas será que algum de nós sentiu um amor tão grande capaz de nos fazer subjugar a nossa vontade, para dar espaço a outro de tomar o nosso lugar? Penso que poucos. Os desentendimentos, os disfarces e os enganos por se fazer passar por Christian, que corteja Roxane, provocam momentos de boa disposição a quem lê esta peça de teatro. 

É uma autêntica troca de vidas, onde Cyrano de Bergerac pode, finalmente, expressar o que sente por Roxane: as cartas escritas por Cyrano, que Roxane recebe, a pensar que são de Christian, ou ainda, as palavras ditas, às escondidas, por Cyrano, como se fosse Christian.  Momentos divertidos, mas que são genuínos. E penso que é aqui que entra a verdadeira ficção. Porque  alguém proferir tais palavras só pode ser ficção.

"Sim, esse sentimento, 
terrível a inundar-me, e também ciumento,
do verdadeiro amor possui o furor triste!
Amor, sem egoísmo, amor que assim existe!
Ah! por tua ventura eu te daria a minha,
mesmo sem te dizer jamais ao que é que vinha,
se ao longe, alguma vez, tua ventura ouvisse, 
pois me sacrifiquei, e um pouco ela sorrisse!
E cada olhar dos teus suscita uma virtude
nova, uma valentia em mim! Não sei se pude
fazer-te compreender? Diz-me, estás a sentir
minha alma que assim vai, nas sombras, a subir?" (Rostand, Edmond, Cyrano de Bergerac, Lisboa, 2007, Bertrand)

No final da peça, a verdade descobre-se é certo. Porém, mais uma vez, a história confunde-se com a realidade: quando se sabe o que é real, já é tarde de mais. 

Esta é, sem dúvida, uma história que me apaixona e me comove. Muitas vezes tenho a vontade de acreditar que podem existir pessoas honestas, frontais e bravas, tal como esta personagem, o Cyrano de Bergerac. Noutras situações, essa vontade desaparece e, eu própria, fico desmotivada. Resta-me saber que tenho esta obra comigo. E sempre que quiser ter um exemplo de um "Cyrano de Bergerac", basta abrir este livro e recordar a sua história.  


Nota: As imagens que acompanham o texto pertencem à peça de teatro "Cyrano de Bergerac", encenada pelo actor Alessandro Preziosi, que também interpreta a personagem de Cyrano. Esta peça estreou em 2012, uma produção do Teatro Stabile d' Abruzzo da cidade italiana de L'Aquila, do qual Preziosi é também Director Artístico. http://archivio.ilcapoluogo.it/News/Eventi/TSA-debutta-ad-Ascoli-Cyrano-de-Bergerac-75274 

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