Quando o Coração se Engana

Uma pessoa racional não pode dar tanto espaço para confiar no coração. Pelo menos é aquilo que a lógica me diz. Mas, se uma pessoa que privilegia o pensamento sobre tudo não dá espaço ao coração onde fica a emoção? A emoção vem do coração.

Foi esse o princípio que me foi norteando. Afinal, o meu coração nunca se tinha enganado. E o que fazer se ele nos enganar? Como é possível que o coração nos iluda e nos engane? Não sei como partir daqui. Se a emoção me falha, o que se segue? Seguir com a insipidez da razão, sem surpresas, em linha recta, sem nada que não tivesse já visto, já percebido como é que iria ser?

É triste viver-se assim. Sem esperança de que a emoção nos ajude sempre a fazer a escolha certa. A escolha que nos dará algo. Algo tão grande que, quando se chegue ao fim, se possa dizer: valeu a pena.

Viver só com a razão, não nos dá isso. Vive-se. Levanta-se todos os dias, come-se todos os dias, trabalha-se todos os dias, fala-se todos os dias, deita-se todos os dias. E, assim, vão, mecanicamente, os dias passando. Uns a seguir aos outros. Como se estivéssemos no mesmo sítio, mas que isso não fosse impeditivo de os dias passarem à nossa frente, serenos e cinzentos, mesmo em dias de sol, onde as suas únicas pinceladas de cor são deixadas pelas vidas que nos rodeiam. Isso, acentua ainda mais essa sobrevivência consciente em que nada nos comove.

Noto isso de dia para a dia. A comoção não é a mesma. A racionalidade traz uma frieza externa muito evidente. Como se estivesse coberta por camadas de gelo. A emoção não existe para que possa despoletar a comoção. E, por vezes, até já nem percebo bem o que leva as pessoas a comoverem-se. A racionalidade traz, também, essa incompreensão.

Quando nunca se teve muito a que se agarrar sem ser ao coração, quando ele nos falha é dilacerante.

Creio até que há poucas coisas tão profundas como sermos enganados pelo coração. No outro dia, li a frase "se o nosso coração escolheu as pessoas, não as deixaremos ir. Ele não nos vai deixar desistir". Considerei este pensamento muito curioso. Para alguém escrever uma coisa deste género, é sinal de que deverá, ou sonhará, ter uma vida que seja uma linha do tempo em que os acontecimentos estão encadeados uns nos outros... quase como se a existência fosse programada por algo ou por alguém que os leve a estar onde estão, a conhecer as pessoas que conhecem, a amar todos aqueles que amam. Que curioso. Nesta vida com sentido deverá haver qualquer coisa de mágico que leve as pessoas a acreditar que tomam as decisões certas, na altura exata e, num sentido sonhador o seu coração nunca os engana. Que maravilhoso que deverá ser uma existência assim: vibrante e emocionante. 

O mundo é feito de muitas coisas e aprendo todos os dias que esse poder sonhador acerca da vida não é mesmo para toda a gente. Há quem o tenha, que se tenha apropriado da vida com as duas mãos e que a vive assim, alegre, de peito aberto às balas, confiando naquilo que o seu coração lhe diz. Depois, há outras pessoas que não fazem a mínima ideia do que é isso... do que é viver. Ou porque não tiveram a oportunidade, porque não são visíveis aos outros ou simplesmente porque as coisas não acontecem. Há algum tempo, um escritor português, do qual agora não me lembro o nome, escreveu algo do género: é preciso ter sorte para as coisas acontecerem. É preciso ter sorte para conhecer a pessoa certa, para estar no sítio certo, para aproveitar o acaso. Pois, há pessoas que não têm essa sorte e que, por conseguinte, não têm o que agarrar e a vida passa-lhes. Tenho pena de não me recordar do nome deste escritor, está certíssimo.

Como pode alguém que não tem a devida sorte confiar no coração? E se o faz, concerteza será uma das poucas coisas em que deposita o seu aconchego, como procede se esse coração o engana? Sobrevive, vazio e escondido, à espera de que um dia tudo termine e, quem sabe aí, sim, tenha uma nova oportunidade, num outro contexto, numa outra realidade, num outro mundo, numa outra vida... quem sabe.

Imagem - obra "Heart/Head" de Simon Houlton

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