Acordei-te IV - Brincos

 - Aquele momento confirmava. O melhor da vida é o que não há de vir.

Ele fecha o livro, coloca-o em cima da mesinha e leva o cigarro à boca.

Encosto a minha face no tecido verde do sofá, encolho as minhas pernas. Tenho o lençol enrolado no meu corpo, o que me dá alguma sensação de proteção. Isso... Ou estar aqui com ele. Às vezes prefiro não atribuir a este homem todos os meus momentos de paz e engano-me a mim própria.

- O melhor que temos será sempre o que já foi? Ou o que está a ser?

Nada digo e apenas o admiro. O seu corpo nu, tornou-se presença habitual junto de mim. Só quando ele assim ficou comigo pela primeira vez, percebi o que era sentir-me livre. Com os meus olhos percorro a sua face, deixando-os, por alguns segundos na sua orelha. Aquele pequeno brinco na sua orelha dá-lhe sempre aquele ar distinto, de quem é grande mas que continua a brincar.

- O que achas? - Ele insiste antes de olhar para mim.

- Hum... Não sei... No meu caso, nunca nada me foi melhor do que isto aqui.

Ele volta a olhar em frente, coloca a sua mão sobre o meu pé e aperta-o ao de leve.

- Sabes que... Sempre desejei que ninguém tivesse a minha vida.

Ele retira a mão do meu pé. O cigarro terminou e eu sei o que ele vai fazer a seguir. Vai acender outro, com a esperança de que eu continue com o meu pensamento.

E assim é.

- É meio estranho, não é? Mas sempre desejei que ninguém vivesse como eu. Com aquela sensação de estar presa a uma vida que não era a minha. É desgastante e... E deixa-nos sem entusiasmo. Mesmo que eu estivesse habituada a viver uma vida que não era a minha, há sempre um vazio, sabes? Onde parece que não te enquadras em nada. Não te sentes completo seja a fazer o que for. Nunca me senti como se estivesse desenhada para fazer uma coisa. Sempre me senti deslocada...

- Sempre desejaste que todos os outros não experimentassem esse vazio.

- Sim, sempre.

- E agora? - Ele olha para mim, seriamente. Mas, os seus olhos castanhos trazem em si uma harmonia que me faz acreditar que, realmente, o melhor não está para vir, como escreveu Mia Couto. Porque o melhor é o que está agora, aqui, comigo.

- Agora, há coisas que me fazem acreditar que realmente todos deveriam viver o que tenho aqui.

Ele mostra-me um leve sorriso e volta a colocar a mão no meu pé.

- Aqui?

Fecho os olhos e sorrio.

- Procuras elogios?

- Não...

- Parece-me que procuras elogios... - gosto tanto de ver quando o sorriso adorna a sua face. Abro os olhos e vejo como ele tenta esconder o sorriso, colocando o cigarro na boca.

O fumo por toda a sala já há muito que não me incomoda. Ajuda a criar este cenário de uma existência só nossa, onde não cabe mais ninguém, onde não cabe mais nenhuma dor ou incerteza. Uma existência onde, pela primeira vez, sinto a que pertenço.

- Só procuro perceber...

- Sim, aqui - digo de imediato e coloco a minha mão sobre a sua. O calor que sinto vindo da sua pele, é como se me aquecesse por dentro - Aqui é o que alguma vez tive de melhor, o que me faz acreditar que o melhor não está por vir. O melhor está mesmo aqui.

Falo-lhe sem reservas. Afinal, esse foi sempre o nosso acordo. Falar e sentir sem reservas. Estarmos inteiros, um com o outro, sem subterfúgios, sem palavras mansas, sem medo. Sermos nós. Sem máscaras, limpos de toda a merda que temos em cima. Como se... Como se juntos conseguíssemos regressar àquela pureza que tinhamos perdido, que tínhamos deixado ficar lá atrás, tão atrás no tempo, que quase nos esquecemos o que é isso de ser puro. Sem amarras.

Ele inclina-se e encosta a sua testa aos meus joelhos. Depois, beija-os por cima do lençol e levanta a cabeça. Ele encontra nos meus joelhos o poiso ideal para colocar aí o seu queixo e olhar-me, por um segundo, sem palavras. 

- Talvez o Mia Couto tenha razão, então. O melhor da vida não está no futuro. Está no presente. - Ele diz num tom baixo, naquele seu tom único e indescritível, vindo do seu íntimo. 

Ele olha-me como se eu fosse alguma coisa... Como se eu valesse alguma coisa. E isso é extraordinário, principalmente para alguém que nunca pensou valer o que quer que seja.

Levo a minha mão ao seu cabelo e por aí passeio os meus dedos, terminando na sua orelha, na sua pequena argola. Aquela pequena argola que sempre me disse tanto.

- Quando eu era miúda usava umas argolas deste tamanho - A emoção está na minha voz. Sem esperar é como se tivesse o coração na boca - Outro dia voltei a olhar para elas e não chorei.

- Costumavas chorar quando olhavas para elas?

Aceno.

- Sim, muito. Era como se fosse um confronto com os meus sonhos da altura. Sonhos que temos quando somos miúdos. No fundo, sempre foram sonhos que eu nunca alcancei. 

Ele leva as suas mãos às minhas pernas e aí sim. Sinto-me ainda mais protegida.

- E porque não choraste desta vez?

Sorrio e pouso as minhas mãos sobre as suas. Entrelaçamos os dedos.

- Porque, como te disse, o melhor estou a viver agora.

Finalmente, ele mostra-me o seu sorriso e eu não consigo sequer pronunciar uma única palavra.

- Tal como disse Mia Couto - apenas aceno - O melhor da vida não está para vir.

Não sei explicar porquê, mas os meus olhos enchem-se de lágrimas e eu sei que não tarda e elas estarão no meu rosto.

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Nota: A frase que dá início ao texto é do livro de Mia Couto "Terra Sonâmbula".

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Acordei-te - II

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