Acordei-te?

Abro os olhos devagar. A primeira coisa que vejo são as suas coxas, que albergam em si aquele conjunto de folhas que o acompanha desde que aqui cheguei.
Deitada de barriga para baixo, estou com alguma dificuldade em me mexer. Quero ficar ali para todo o sempre. Suspiro ao de leve e sinto o cansaço do meu corpo e fecho novamente os olhos. Não é um cansaço mau. É um cansaço bom. Até há pouco tempo pensava que todo o cansaço era mau. Mas ele mostrou-me que não.

Deve ser ainda de tarde...

O cheiro do cigarro que ele fuma está por todo o quarto. Quando ele lê, tem quase sempre que fumar um cigarro.

Oiço-o murmurar. 

Abro novamente os olhos e, devagar, ergo um pouco a minha cabeça da almofada amarrotada e vejo com ele mexe os seus lábios ao de leve, emitindo um som tão baixo, que nem eu sei como fui capaz de o ouvir. Por qualquer razão que desconheço, o meu cérebro entendeu que agora conseguia coordenar o meu corpo e acabo por me mover. Seguro no lençol, que apenas me cobre o peito. Está calor, é natural que não me importe em cobrir o resto do meu corpo desnudo. 

Sento-me à chinês em cima da almofada e encosto-me à cabeceira da cama, virada para ele. Ao de leve a minha mão continua a segurar no lençol, enquanto pouso a minha cabeça na madeira e admiro-o.

Vendo-o de perfil, consigo vislumbrar ainda de melhor forma a sua barba, já meio cinzenta, o seu cabelo meio despenteado, também ele grisalho, denotando a sua idade que não para. Tal como a minha. Mas é evidente o efeito dos anos na sua pele, o que sempre lhe deu um ar distinto. Pelo menos para mim, ele tem sempre um ar distinto, um semblante diferente de qualquer outro que já conheci. Mas não será isso provocado pelo sentimento que nutrimos por esse alguém? Para mim este homem tem algo de único, enquanto que um outro qualquer da mesma idade e parecido com ele não me diz nada. Aquilo que sentimos por alguém não nos toldará a visão e o pensamento, acreditando que estamos sempre perante alguém especial? Ele é especial para mim, mas não o será para toda a gente.

- "O que nos resguarda é o peito de outra pessoa, só nos sentimos verdadeiramente resguardados quando temos alguém atrás".

Agora, o seu leve múrmurio deixou de ser assim tão leve.
- "(...) alguém que porventura não vemos e que nos resguarda as costas com o peito, que está prestes a roçar em nós e acaba sempre por fazê-lo, e às vezes, inclusive, essa pessoa põe-nos uma mão no ombro, por meio da qual nos tranquiliza e também nos agarra".

Ele volta a colocar o cigarro na boca e continua a ler. Os óculos dar-lhe-ão sempre um ar mais sábio, sabendo que eles são o único meio para que consiga continuar a ler livre e claramente, sem equívocos.

- "(...) a maioria dos casais e namorados, os dois voltam-se para o mesmo lado quando se dão as boas-noites, de modo que um passa a noite inteira de costas voltadas para o outro e sabe que está amparado por ele ou ela, por esse outro, e, a meio da noite, ao acordar sobressaltados por um pesadelo ou sentindo-se incapaz de conciliar o sono, ao ser acometido por uma febre ou julgar-se sozinho, abandonado e às escuras, basta-lhe dar meia-volta e ver então, à sua frente, o rosto daquele que o resguarda, que se deixará beijar em tudo o que no rosto for beijável (nariz, olhos e boca; queixo, testa e faces) ou quem sabe, meio adormecido, lhe pousará uma mão no ombro para o tranquilizar, ou para o agarrar, ou talvez para se segurar a si prório".

Ele retira o cigarro da boca que, por um momento se apagou. Ele pega no isqueiro e volta a acendê-lo.
- Acordei-te? - pergunta-me sem tirar os olhos daquilo que está a fazer.

- Não. Tu nunca me acordas.

Ele sorri. Tira os óculos e pousa-os, assim como ao isqueiro, na mesinha de cabeceira.
- Isso é mau?
- Não. É óptimo.

Ele fuma mais um pouco do cigarro. Finalmente, roda a sua cabeça e olha-me nos olhos, com a mesma intensidade de sempre.
- Porque ficamos aqui a resguardar-mo-nos. Eu no teu peito e tu no meu.
- "só nos sentimos verdadeiramente resguardados quando temos alguém atrás"- repito uma das primeiras frases que ele lia há pouco.

Ele pega em todas as folhas albergadas pelo seu regaço e coloca-as no chão, ficando sem nada no corpo que o proteja do meu olhar. Ele volta a fixar os seus olhos na parede em frente.
- Javier Marías.

Desencosto-me da cabeceira da cama, deixando que o lençol resvale até à minha cintura.
- Podias continuar a ler.

Depois de algum tempo em silêncio, ele toma a iniciativa.
- Qualquer dia vou ter de te acordar.

Sorrio ao de leve e, por um instante, fecho os olhos.
- Qualquer dia vamos ter de acordar.

Quando volto a abri-los para que possa vislumbrar o seu semblante, ele está já a olhar para mim. Sei bem do que estamos a falar. Sabemos que tudo tem um prazo. Quando nos dispusemos a isto, sabíamos que tínhamos um prazo, muito embora não soubessemos qual seria. Talvez ainda não o saibamos.

Ele acaba de fumar e põe o que resta do cigarro no cinzeiro.

- Pensei em ficar cá esta noite... Mas, só se quiseres - digo, ao mesmo tempo que volto a puxar o lençol até ao meu peito.

Ele coloca o cinzeiro na mesa e aproxima-se de mim. 
- Ainda não chegou a hora.

Ele coloca a sua mão na minha nuca. Sinto os seus dedos que me seguram a cabeça e me afagam os cabelos e fecho os olhos ao de leve.
- Vamos continuar a amparar-nos?
- Sim...

Quando ele finalmente me beija de forma segura e inconfundível, sei que, de facto, ele continua ali
comigo. Da mesma maneira que eu continuo com ele.

Deixo novamente o lençol cair, levando as minhas mãos à sua cara, conseguindo sentir cada uma das linhas das suas, ainda, leves rugas. Desvio os meus lábios dos seus. Levo-os ao seu nariz, depois beijo cada uma das suas pálpebras.

Agora, é a vez dele se desviar um pouco e beija-me as faces, a minha testa e termina no meu queixo. Sentindo-me como se estivesse a ser adorada, solto o meu sorriso.
- Não, ainda não chegou a hora.

Ele sorri-me de volta e maneia a cabeça, selando aquele compromisso de que ainda estamos dentro do nosso prazo, e beija-me profundamente.

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Nota: os excertos que aparecem aqui são do livro "Coração tão Branco" de Javier Marías.

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