Parar a Tempo II - Brincar com as Palavras
- Nunca soubeste lidar com essa carência afetiva...
- Tu também não.
- Pois não.
- Mas a tua carência afetiva implica contigo e com os outros.
- E tu sofres tudo sozinha.
Sorrio. Ele tem sempre a mania de que me conhece.
- Sim, sofro tudo sozinha. Nunca quis causar problemas a ninguém. Se há coisa que eu nunca quis foi ser um problema fosse para quem fosse.
- Por isso é que te escondes na tua sombra.
- Claro. Sempre andando despercebida e com cuidado para que continue a ser... a ser quase invisível. Amparando o que me vai caindo nos braços... Daí que tenhamos feito bem em parar fosse o que fosse.
Ele pega no cigarro.
- É curioso como é que te tirei dessa sombra.
Encosto-me na cadeira. Tenho uma leve dor de cabeça que me acompanha desde a manhã. Agora, já ao entardecer, a moinha torna-se mais evidente.
- Curioso?
- Sim... Até hoje não sei bem como o fui capaz de o fazer...
- Isso é fácil. Sentias-te sozinho e levaste tudo na brincadeira.
- Da maneira que falas até parece que fui um inconsequente.
- Foste um pouco...
A fita-me.
- Já falámos disto algumas vezes, não percebo porque é que temos de aqui voltar... Mas, na verdade, se não o tivesses feito não estávamos aqui agora.
- Culpaste-me, alguma vez, por aquilo que vivemos?
- Não, A. Nunca o fiz. Sabes bem que nunca te vi dessa forma. Nunca te desejei mal ou pelo facto de me teres retirado da minha sombra. Porque me perguntas isso?
- Eu penso que não causo problemas a ninguém.
Entendo que já não estamos a falar de nós. Suspiro e pego na garrafa que estava pousada na mesa junto à minha cadeira.
- Será?
- Nunca te quis causar problemas.
- Eu não to estou a dizer que o fizeste comigo. Mas... e em relação aos outros?
Ele fica pensativo e eu decido continuar. Decido tentar fazer com que ele perceba que não precisa de procurar mais nada para superar a sua carência afectiva.
- A, tu ainda tens algo de bom. Tu tens salvação, eu não.
- Como assim?
- Tu tens alguém que te ama: ela ama-te incondicionalmente.
Ele suspira.
- Tenho a certeza de que o seu amor é capaz de superar a tua falta de afecto.
- Estás-me sempre a dizer isso...
Coloco a minha mão no seu ombro.
- Não quero que te zangues comigo: só quero que fiques bem. Tranquilo e feliz... para quê andares à procura de algo que é apenas a satisfação do momento?
- Faz-me sentir vivo. Já falámos sobre isso várias vezes.
- Bem... eu bem sei que posso dizer-te o que me apetecer. No fim de contas, fazemos sempre aquilo que queremos.
- Aquilo que sentimos...
- Ou aquilo que julgas sentir.
- Para de brincar com as palavras... - ele diz antes de acender o cigarro.
Oiço um pouco mais da música que toca no gira discos em silêncio.
- Como é que se faz isso? Não seguir os impulsos? - Ele pergunta, discretamente.
- Não sei, A.
- Como é que nós fizemos isso?
- Aí está uma boa pergunta... talvez no nosso caso tenha sido diferente e tenhamos percebido que estávamos a confundir tudo: desejo com interesse. Impulso com curiosidade.
- Intensidade com amizade.
- Sim... foi diferente. Mas... queres-me contar o que aconteceu?
- Estive com outra mulher.
Aceno. Para mim não é uma novidade. Sempre que falamos destas suas experiências ele traz aquela expressão de quem tem de dizer qualquer coisa, só não sabe muito bem como começar.
- Sim, mais uma. E não me consigo sentir mal com isso - A completa.
- Nunca te sentiste mal com isso, A.
- Sim. Isso faz de mim um crápula?
- Não. É a tua carência...
A. encosta a cabeça na cadeira.
- Parece que estás sempre a livrar-me de culpas.
- Tu próprio disseste que não sentes culpa.
- Sinto que estou num labirinto.
- Isso só muda quando sentires que tudo o que precisas para seres completo, já o tens à tua volta. Eu sei disso e estou sempre a dizer-to. Mas só quando o sentires verdadeiramente é que estarás pronto para veres que nada em ti é vazio... ou carente. E, aí, não precisarás de mais nada.
- Tenho de sentir.
- Sim, tens de o sentir... como em tudo na tua vida.
- E tu?
- Eu o quê? - pergunto, confusa.
- Tu não tens de sentir tudo na tua vida?
- Bem, talvez o meu problema é que eu sinta tudo em demasia. Com demasiada intensidade e isso também não é saudável.
- É extenuante.
Sorrio.
- Exactamente.
Talvez seja por nos entendermos de uma forma única que por vezes me pergunto se não o amarei com todo o meu coração. Talvez sim. E talvez essa seja a razão para que eu esteja sempre a olhar por ele, sempre na tentativa de que ele se torne numa melhor pessoa e que deixe de procurar aquilo que há tantos anos já encontrou com a sua mulher.
Ou talvez são os meus devaneios. A dor de cabeça é agora mais forte.
Fecho os olhos.
- Por isso eu sou um caso perdido - digo, baixinho. Mas eu sei que ele me ouviu. Ele ouve-me sempre.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como acreditas que eu tenho salvação?
- Sim. Tu tens salvação... E tens tanto para viver, já viste? Tens uma vida inteira pela frente. Cheia de grandes experiências, vais ter uma família enorme e o mais importante de tudo é que nunca estarás só. E podes ser um bom exemplo. Um exemplo de amor...
Ele franze o sobrolho.
- Falas como se fosses morrer amanhã.
- E não estarei eu já morta?
- Não brinques com as palavras, já te disse.
- Sabes que tenho razão. Apenas não mo queres confirmar, porque és meu amigo. Aceito essa tua gentileza.
Inclino-me e coloco a minha mão sobre a sua, fazendo com que o nosso olhar se encontre novamente.
- Acredita em ti e no teu coração. Um dia olharás à tua volta e dar-te-ás conta do verdadeiro amor que te circunda. Um amor grande que vai esmagar o desejo esporádico.
A coloca a outra mão na minha face.
- Acreditas sempre em mim.
- Claro, é a única forma de não morrer subitamente. Estou aqui para isso: para acreditar em ti e...
- E para amparares nos teus braços aqueles que precisarem - ele completa.
A retira a mão da minha face e coloca sobre as nossas mãos, que estão ainda unidas.
- Assim fazes-me acreditar que já me conheces.
- Um pouco.
- Estou meio cansada, sabes? Tantos traumas, sem que nada me iluminasse. Sabes, às vezes pergunto-me como deve ser essa sensação... Algo de terrível aconteceu, mas eventualmente a vida dar-te-á algo que te faça superar isso, que te faça ser melhor. Deve ser uma sensação única.
Volto a encostar-me na cadeira e deixo as suas mãos.
- Isso nunca te aconteceu?
- Hum... Não creio. Dessa forma haveria uma justificação do porquê das coisas não te correrem bem, poderiam ter-te levado a algo bom no final, não sei. Eu estou sempre igual, no mesmo sítio, independentemente das minhas más experiências.
- Como se fosses uma rocha onde a água do mar bate constantemente.
Fixo o meu olhar em A. Ele continua a fumar, a olhar lá para fora. Estamos na minha pequena varanda, a aproveitar os últimos raios de sol antes de ele ter de ir para casa.
- As rochas também se desgastam.
A apenas acena.
- Será ridículo se te disser que estou cansada disto?
A acaba de fumar o seu cigarro. O disco termina e o silêncio instala-se entre nós.
Não sei por quanto tempo estivémos em silêncio, a ouvir os carros que passam na rua.
- Não. Isso é apenas resultado da tua carência afetiva.
Nada digo. Eu sei que A ainda tem algo para dizer.
- Esta maldita carência manifesta-se de várias formas: no meu caso faz-me procurar incessantemente a falsa sensação de que estou vivo. A ti deixa-te paralizada e fechada no mesmo sítio, como se fosses uma rocha invisível.
De forma certeira, A acaba por fazer um resumo de tudo aquilo que ali estivemos a conversar. Nada surpreendente. Ele é mesmo assim.
- Agora és tu que brincas com as palavras.
- Digo a verdade.
- Sim, é a única verdade.
NOTA: O texto pode ser lido na sequência do conto "Parar a Tempo": https://umolharpessoal.blogspot.com/2020/03/parar-tempo.html
- Tu também não.
- Pois não.
- Mas a tua carência afetiva implica contigo e com os outros.
- E tu sofres tudo sozinha.
Sorrio. Ele tem sempre a mania de que me conhece.
- Sim, sofro tudo sozinha. Nunca quis causar problemas a ninguém. Se há coisa que eu nunca quis foi ser um problema fosse para quem fosse.
- Por isso é que te escondes na tua sombra.
- Claro. Sempre andando despercebida e com cuidado para que continue a ser... a ser quase invisível. Amparando o que me vai caindo nos braços... Daí que tenhamos feito bem em parar fosse o que fosse.
Ele pega no cigarro.
- É curioso como é que te tirei dessa sombra.
Encosto-me na cadeira. Tenho uma leve dor de cabeça que me acompanha desde a manhã. Agora, já ao entardecer, a moinha torna-se mais evidente.
- Curioso?
- Sim... Até hoje não sei bem como o fui capaz de o fazer...
- Isso é fácil. Sentias-te sozinho e levaste tudo na brincadeira.
- Da maneira que falas até parece que fui um inconsequente.
- Foste um pouco...
A fita-me.
- Já falámos disto algumas vezes, não percebo porque é que temos de aqui voltar... Mas, na verdade, se não o tivesses feito não estávamos aqui agora.
- Culpaste-me, alguma vez, por aquilo que vivemos?
- Não, A. Nunca o fiz. Sabes bem que nunca te vi dessa forma. Nunca te desejei mal ou pelo facto de me teres retirado da minha sombra. Porque me perguntas isso?
- Eu penso que não causo problemas a ninguém.
Entendo que já não estamos a falar de nós. Suspiro e pego na garrafa que estava pousada na mesa junto à minha cadeira.
- Será?
- Nunca te quis causar problemas.
- Eu não to estou a dizer que o fizeste comigo. Mas... e em relação aos outros?
Ele fica pensativo e eu decido continuar. Decido tentar fazer com que ele perceba que não precisa de procurar mais nada para superar a sua carência afectiva.
- A, tu ainda tens algo de bom. Tu tens salvação, eu não.
- Como assim?
- Tu tens alguém que te ama: ela ama-te incondicionalmente.
Ele suspira.
- Tenho a certeza de que o seu amor é capaz de superar a tua falta de afecto.
- Estás-me sempre a dizer isso...
Coloco a minha mão no seu ombro.
- Não quero que te zangues comigo: só quero que fiques bem. Tranquilo e feliz... para quê andares à procura de algo que é apenas a satisfação do momento?
- Faz-me sentir vivo. Já falámos sobre isso várias vezes.
- Bem... eu bem sei que posso dizer-te o que me apetecer. No fim de contas, fazemos sempre aquilo que queremos.
- Aquilo que sentimos...
- Ou aquilo que julgas sentir.
- Para de brincar com as palavras... - ele diz antes de acender o cigarro.
Oiço um pouco mais da música que toca no gira discos em silêncio.
- Como é que se faz isso? Não seguir os impulsos? - Ele pergunta, discretamente.
- Não sei, A.
- Como é que nós fizemos isso?
- Aí está uma boa pergunta... talvez no nosso caso tenha sido diferente e tenhamos percebido que estávamos a confundir tudo: desejo com interesse. Impulso com curiosidade.
- Intensidade com amizade.
- Sim... foi diferente. Mas... queres-me contar o que aconteceu?
- Estive com outra mulher.
Aceno. Para mim não é uma novidade. Sempre que falamos destas suas experiências ele traz aquela expressão de quem tem de dizer qualquer coisa, só não sabe muito bem como começar.
- Sim, mais uma. E não me consigo sentir mal com isso - A completa.
- Nunca te sentiste mal com isso, A.
- Sim. Isso faz de mim um crápula?
- Não. É a tua carência...
A. encosta a cabeça na cadeira.
- Parece que estás sempre a livrar-me de culpas.
- Tu próprio disseste que não sentes culpa.
- Sinto que estou num labirinto.
- Isso só muda quando sentires que tudo o que precisas para seres completo, já o tens à tua volta. Eu sei disso e estou sempre a dizer-to. Mas só quando o sentires verdadeiramente é que estarás pronto para veres que nada em ti é vazio... ou carente. E, aí, não precisarás de mais nada.
- Tenho de sentir.
- Sim, tens de o sentir... como em tudo na tua vida.
- E tu?
- Eu o quê? - pergunto, confusa.
- Tu não tens de sentir tudo na tua vida?
- Bem, talvez o meu problema é que eu sinta tudo em demasia. Com demasiada intensidade e isso também não é saudável.
- É extenuante.
Sorrio.
- Exactamente.
Talvez seja por nos entendermos de uma forma única que por vezes me pergunto se não o amarei com todo o meu coração. Talvez sim. E talvez essa seja a razão para que eu esteja sempre a olhar por ele, sempre na tentativa de que ele se torne numa melhor pessoa e que deixe de procurar aquilo que há tantos anos já encontrou com a sua mulher.
Ou talvez são os meus devaneios. A dor de cabeça é agora mais forte.
Fecho os olhos.
- Por isso eu sou um caso perdido - digo, baixinho. Mas eu sei que ele me ouviu. Ele ouve-me sempre.
- Tens a certeza?
- Absoluta.
- Como acreditas que eu tenho salvação?
- Sim. Tu tens salvação... E tens tanto para viver, já viste? Tens uma vida inteira pela frente. Cheia de grandes experiências, vais ter uma família enorme e o mais importante de tudo é que nunca estarás só. E podes ser um bom exemplo. Um exemplo de amor...
Ele franze o sobrolho.
- Falas como se fosses morrer amanhã.
- E não estarei eu já morta?
- Não brinques com as palavras, já te disse.
- Sabes que tenho razão. Apenas não mo queres confirmar, porque és meu amigo. Aceito essa tua gentileza.
Inclino-me e coloco a minha mão sobre a sua, fazendo com que o nosso olhar se encontre novamente.
- Acredita em ti e no teu coração. Um dia olharás à tua volta e dar-te-ás conta do verdadeiro amor que te circunda. Um amor grande que vai esmagar o desejo esporádico.
A coloca a outra mão na minha face.
- Acreditas sempre em mim.
- Claro, é a única forma de não morrer subitamente. Estou aqui para isso: para acreditar em ti e...
- E para amparares nos teus braços aqueles que precisarem - ele completa.
A retira a mão da minha face e coloca sobre as nossas mãos, que estão ainda unidas.
- Assim fazes-me acreditar que já me conheces.
- Um pouco.
- Estou meio cansada, sabes? Tantos traumas, sem que nada me iluminasse. Sabes, às vezes pergunto-me como deve ser essa sensação... Algo de terrível aconteceu, mas eventualmente a vida dar-te-á algo que te faça superar isso, que te faça ser melhor. Deve ser uma sensação única.
Volto a encostar-me na cadeira e deixo as suas mãos.
- Isso nunca te aconteceu?
- Hum... Não creio. Dessa forma haveria uma justificação do porquê das coisas não te correrem bem, poderiam ter-te levado a algo bom no final, não sei. Eu estou sempre igual, no mesmo sítio, independentemente das minhas más experiências.
- Como se fosses uma rocha onde a água do mar bate constantemente.
Fixo o meu olhar em A. Ele continua a fumar, a olhar lá para fora. Estamos na minha pequena varanda, a aproveitar os últimos raios de sol antes de ele ter de ir para casa.
- As rochas também se desgastam.
A apenas acena.
- Será ridículo se te disser que estou cansada disto?
A acaba de fumar o seu cigarro. O disco termina e o silêncio instala-se entre nós.
Não sei por quanto tempo estivémos em silêncio, a ouvir os carros que passam na rua.
- Não. Isso é apenas resultado da tua carência afetiva.
Nada digo. Eu sei que A ainda tem algo para dizer.
- Esta maldita carência manifesta-se de várias formas: no meu caso faz-me procurar incessantemente a falsa sensação de que estou vivo. A ti deixa-te paralizada e fechada no mesmo sítio, como se fosses uma rocha invisível.
De forma certeira, A acaba por fazer um resumo de tudo aquilo que ali estivemos a conversar. Nada surpreendente. Ele é mesmo assim.
- Agora és tu que brincas com as palavras.
- Digo a verdade.
- Sim, é a única verdade.
NOTA: O texto pode ser lido na sequência do conto "Parar a Tempo": https://umolharpessoal.blogspot.com/2020/03/parar-tempo.html
Comentários
Enviar um comentário