Parar a Tempo

- Lá estás tu...
Ele diz no meio de um sorriso.

Retorno o meu olhar para o dele e sorrio também.
- Sabes que acho extraordinário.
- Eu sei... Nunca percebi porquê...
Encolho os ombros. Haverá algo mais bonito do que ver a aliança num dedo de um homem?
- Nem eu... Mas gosto tanto de a ver no teu dedo. Como está ela?
- Está bem - Ele olha para o relógio - a esta hora deve ainda estar a caminho de casa.
- Parece-me extraordinário como um objeto muda tudo ou significa tanto. E fica tão bem a um homem. Fica-te tão bem...
- Não digas poesia. Ainda é cedo para isso.

Solto uma gargalhada e bebo um pouco da cerveja que a garrafa ainda guarda.
- Eu não digo poesia. Nem sequer escrevo poesia...
- Mas podias.
- Agora és tu.
- Agora sou eu o quê?
- Que estás a dizer poesia. Desde quando é que eu poderia escrever poesia? Eu nem sequer consigo escrever rimas!

Ele maneia a cabeça e esboça aquele pequeno sorriso, que eu vou sempre considerar como a expressão que melhor o caracteriza.
- Ai, L. ... Já te disse mais do que uma vez que está na hora de te dares valor. Ainda não consigo perceber porque raio não foste bater às portas das editoras com aquilo que escreves. Está mais do que no tempo de veres algo teu publicado - A. inclina-se na minha direção - num livro - ele completa num tom muito mais baixo.

A. volta a encostar-se na cadeira e bebe um pouco mais da sua cerveja. Eu apenas admiro os seus gestos, sentada na cadeira ao seu lado.

- Aquilo que escrevo não é assim tão extraordinário. Além disso, sabes bem como funciona o mercado. As editoras muito dificilmente apostam em novos autores. Muito menos se não pertencemos ao meio.

A. fecha os olhos.
- E alguma vez tentaste? Eu estou a falar disso... de tentar. Deves isso a ti própria. Tu nem sequer participas em concurso para livros inéditos.
- Porque talvez não tenha escrito um livro?
Ele solta o seu belo riso. Cada vez que o oiço, sinto-me grata por ter a sua amizade. Ainda bem que parámos a tempo.
- Queres dizer-me que não tens nada escrito, L.? Eu sei que isso não é verdade. Não é suposto os amigos esconderem uns dos outros o que quer que seja... muito menos nós.

Coloco as minhas mãos na minha cabeça e encosto-me na cadeira.
- Pronto. Desculpa. Tens razão.
- Nah... - A. abre os olhos e inclina-se outra vez na minha direção - não me peças desculpa. Sabes como detesto que o faças. Estamos apenas a falar.
Imito a sua posição e inclino-me também para ele.
- Sim. Eu sei. Estamos apenas a falar. - Dou-lhe um beijo rápido na face e volto a encostar-me na cadeira.

- Tens esse péssimo hábito de me pedires desculpas - Ele sorri-me - Agora que penso nisso... Acho que eu nunca te pedi desculpas, pois não?
Penso por um segundo e, nestes anos de amizade recíproca e sólida, percebo que ele tem razão.
- Pois não. Acredito que tens razão... Nunca me pediste desculpa. Talvez por não sentires necessidade?
- Nunca levaste isso a mal - A. foca o seu olhar no meu - Ou estou enganado?
Sorrio.
- Eu sei que tu és assim.
- Mas já existiram situações em que... Em que não me teria ficado mal pedir-te desculpas.
Encolho os ombros.
- Esquece isso, A. .
- Por vezes, esse pensamento passa pela minha cabeça. Quando nos conhecemos - ele para e olha para mim como que a descortinar se podemos voltar a falar sobre o que se passou... Ou melhor, sobre o que não se passou. Aceno - Eu estive quase a deitar tudo a perder.
- Não foste só tu, A. . Eu também.
Por um momento, ele apenas me olha, profundamente, como sempre acontece cada vez que ele quer perceber se estou a falar de forma séria.
- Parámos a tempo - dizemos em conjunto e acabamos a sorrir um para o outro de forma leve, sincera e despreocupada.

- Ainda bem que fomos audazes o suficiente para isso... - Ele diz - Já imaginaste se tivéssemos mesmo ido em frente?
- Seria uma lástima.
- Concordo... Com quem poderíamos beber cerveja?
- Com quem falaria sobre escrita?
- Com quem partilharia o que me preocupa?
- O que nos preocupa...
Ele bebe mais um pouco.

- Concordo... De facto, teria sido uma lástima - digo ao mesmo tempo que levo a minha garrafa à dele. Brindamos, discretamente, com as garrafas de cerveja quase vazias.


Bebemos o que resta da cerveja. Cada um coloca a sua garrafa na pequena mesa à nossa frente.

- Lembras-te de quando nos vimos pela primeira vez? Eu estava tão diferente nessa altura!
- Estavas? - A. pergunta-me surpreendido.
- Sim... Estava tão... tão estável. Estava diferente. Não esperava nada de novo.
- Sério?
- Sim, mas tu... contigo senti empatia... sabes? Aquela coisa que parece quase sobrenatural, não sei. Como se já nos conhecessemos há muito tempo, de uma outra vida, de um outro passado.
- Sim... Sei bem o que é isso. Nem sempre o encontramos.
- Lá está: ainda bem que fomos audazes.

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