Confissões


- Às vezes pensamos que somos tudo, mas não somos nada.

Sentada do seu lado, dou-lhe a minha mão. Não gosto de ver a minha tia assim. Nunca gostei. Na realidade nunca percebi o porquê daquele assombro nos seus olhos, que me faz crer que ela nunca foi verdadeiramente feliz.

- Porque dizes isso?

Ela sorri. Aquele sorriso condescendente, nostálgico, de quem chora por dentro, mas que sorri por fora.

- Hum… Sabes uma coisa? Quando eu era mais nova, durante muito tempo pensei que tinha tudo de bom. Coloquei-me no alto. Como se fosse a mais correta, a sensata de todo o mundo… pensei que por ter valores e os ter como guias na minha vida que isso me fazia uma óptima pessoa. Uma pessoa que os outros quereriam amar e assim tudo ficaria bem. Eu seria feliz. Muitas vezes pensei que o homem que ficasse comigo seria abençoado. Não poderia existir melhor do que eu. O que poderia ser mais atraente para um homem do que uma mulher com a cabeça e o coração nos sítios certos?

Ela maneia a cabeça.

- Tanta coisa… - Ela completa o pensamento. Franzo o sobrolho.

Por vezes, tenho dificuldade em perceber o que ela me quer dizer… ou melhor, tenho dificuldade em dar-lhe sentido.

- Mas isso-

- Eu sei o que vais dizer – ela coloca a sua mão na minha face. O seu olhar triste faz-me calar e ela prossegue. Ela volta a colocar a sua mão sobre a minha.

- Errar é preciso. Não vale a pena querermos fazer sempre tudo o certo. Isso pode fazer com que nunca arrisquemos e isso é terrível. É o arriscar que nos vai permitir ser livres e encontrarmos esse amor que nos poderá fazer felizes. Percebi isso tão tarde, sabes? Demasiado tarde, quando já não pude mudar nada, quando já tinha perdido tantas coisas boas, quando já não podia viver o amor, sentir-me amada. Foi tão tarde… Quando já não podia fazer nada.

O discurso traz-me uma compaixão que parece ser maior do que eu. Ela não chora. Apenas continua a falar com um sorriso na cara e com os seus olhos perdidos no tempo. Num tom calmo e preciso como se me quisesse dar um conselho, como tantas vezes tinha já acontecido.

- E isso é tão triste. E, depois, quando vemos os outros a viver o que tantas vezes sonhámos para nós é uma tristeza imensa. É aquela certeza de que já não vamos conseguir viver o mesmo, porque o tempo passa. O nosso tempo já passou.

Ela faz uma pausa. Os meus olhos fixos nela. Gosto tanto dela, que agora me dou conta como ela se sentiu sozinha toda a sua vida. Mesmo com pessoas que gostam dela, como eu, ao seu redor.

- E como se vive? Assim…

A minha tia olha para mim tão docemente.

- Não sei bem. Talvez essa desesperança, infelicidade e conformismo consiga explicar a maldade nas pessoas… Porque é que nos fazem coisas más ou pessoas que só querem prejudicar o outro… Acho que… Acho que depois de percebermos que nunca vamos ter essa bênção de ser amados, de nos podermos dar a alguém de forma completa, há quem tenha vontade de transportar isso para o outro, querendo que as pessoas à sua volta também sofram como nós ou… ou simplesmente fica-se feliz pelos outros. Deus sabe como sou feliz por ver o teu pai tão feliz… por todos estes anos. É como se todo o meu sofrimento tivesse valido para alguma coisa e de alguma forma para que ele pudesse ser feliz. Não me perguntes porquê, mas eu sinto isso. E sinto isso com outras pessoas. Sabes uma coisa de que eu gosto? Gosto de ouvir as pessoas a falar de amor… Até quando discutem por coisas que não interessam nada, mas acho isso tão engraçado. É próprio de quem se ama. Faço sempre questão de ouvir falar de amor, do quotidiano… Acho que me faz sentir mais humana.

Tudo o que ela me está a dizer, deixa-me embasbacada. Aperto-lhe a mão, apenas para lhe tentar dizer que ela não está sozinha.

- E, depois, acho que temos de arranjar pequenas coisas para nos manter vivos. Pequenos pormenores, que nos fazem sentir bem e entusiasmados… Um livro de que gostamos, uma música que gostamos de ouvir, uma viagem… algo que nos mantenha o coração a bater e ficar contentes com essas pequenas coisas. A minha felicidade só poderá estar nessas pequenas coisas. Enquanto uns lutam para estar juntos, para ultrapassar algo em conjunto, eu apenas me entusiasmo para beber uma bebida de que tanto gosto.

- Sumo de morango. – Digo, já com lágrimas nos olhos.

- Sim… - os olhos dela ficam maiores – Sumo de morango…

Ela olha para o pequeno jardim à sua frente. Ela procura a frase final.

- Depois de percebemos que nos podemos animar com as pequeninas coisas, a nossa única meta é tentar fazer os outros sentirem-se bem… felizes. Contribuir para que eles nunca sintam a solidão que vivemos. É tão triste. E, se realmente, temos o coração no sítio certo não podemos desejar isso a ninguém. Ninguém merece este desespero. Ninguém. Por isso, apenas fazemos de tudo para os ajudar. Talvez seja essa a nossa única função neste mundo.

Sinto como ela me aperta a mão e eu não consigo controlar as minhas lágrimas. Ela olha-me nos olhos e sorri.

- Não chores. Tens a vida pela frente. Para seres feliz. Nunca te esqueças de arriscar, mesmo que seja um erro, não faz mal. Só se te expuseres, sem medos e com coragem, só assim alguém olhará para ti. Olhará por ti.

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