Em torno do Gira-Discos
Retira-se o saco cheio de pó. Ele está bem acomodado, não haja dúvida. Olhamos para a marca e todos concordamos que é muito boa, por isso, a nossa esperança é renovada.
Assim que colocamos o antigo gira-discos em cima da mesa, parece que estamos perante um tesouro. Falta saber se este tesouro está, de facto, funcional. Tínhamos de experimentar. Não podíamos desistir agora... Mesmo que a desilusão deste pequeno tesouro não funcionar fosse maior que a nossa vontade.
Pega-se num disco e com precisão e mãos de lã, este já está pronto a tocar. É certo que já passaram muitos anos desde que se voltou a ouvir este gira-discos por aqui, mas nunca se esquece como é que se o põe a tocar. Pega-se no braço, leva-mo-lo até ao lado esquerdo, faz um clique, e depois é só acertar a agulha na faixa.
A expectativa é grande. Será que vai funcionar? Todos se reúnem em volta da mesa, em silêncio, com medo de que um simples som nos pudesse distrair da nossa missão.
Assim que se ouvem os primeiros acorde de Bob Dylan... Todos riem "viste? Ainda funciona!" É o que mais se ouve. Sorrio e sinto em mim uma satisfação única, como se a música, fosse ela qual fosse, nos tivesse reunido de novo, ali, a criarmos uma nova memória. O volume é baixo, é certo, talvez a coluna tenha de ser arranjada... Mas não interessa. O que mais importa é que aquilo que imaginámos concretizou-se: o gira-discos está a tocar o álbum.
Agora, é tempo de vermos outra coisa. É tempo de olharmos para os discos.
É como se fizéssemos a descoberta do século. Cada vez que pegamos num das dezenas de discos que estão em cima da mesa há uma nova gargalhada, um novo comentário, uma história que se partilha.
Há uma harmonia estranha dentro de mim. Algo que estranho porque são muito raras as vezes em que a sinto. Sorrio. Não dou uma gargalhada, apenas sorrio por me sentir assim... Assim tão leve e tão descansada. É como se pudesse acontecer qualquer coisa que nada ia mudar aquilo que estava a sentir. Será amor? Será paz? Será calma? Serenidade, sim, talvez. Confesso que não sei bem, mas sei que queria estar assim em toda a minha existência.
Trocam-se discos, ouvem-se uma, duas, três canções. Cantamos canções que todos nós conhecemos e aquele olhar de satisfação e de alegria também nos une. É isso que nos está a tornar todos iguais neste momento: a alegria.
Lembro-me que quero ainda experimentar um disco novo e corro para buscá-lo, como se a pressa fosse importante naquele momento. Certamente, as pessoas não iam desaparecer e as coisas não iam sair do lugar. Mas, mesmo assim, o contentamento e a vontade de perpetuar aquele momento faz com que corra.
Rapidamente, estou de regresso à sala e abro o disco, novinho, acabado de comprar na loja. Coloca-mo-lo no gira-discos e sim. Ele toca. A alegria é ainda maior e sorrimos, achando fascinante que algo tão antigo consiga reproduzir algo tão novo... Ainda que seja tão baixinho. Mas não importa. Assim é a nossa festa.
Sentamo-nos em torno do gira-discos e aí ficamos a ouvi-lo, na troca permanente de discos. A música deve ter sido criada por um génio, concerteza. Um génio que sabia o que era o céu.
É durante a noite em que tenho a certeza de que estou a viver algo único. Poderá ou não repetir-se, mas será sempre diferente daquilo que está a ser esta agora.
Escuto atentamente mais uma canção e, aí, tenho outra certeza: a certeza que aquilo que nos está a unir é a música, mas é, também, o amor. Aquele amor que permanece. Mesmo que o mundo acabe, mesmo que fiquemos sem nada, mesmo que estejamos sozinhos, ele permanece.
A noite é longa e cada um segue caminho.
Agora, aqui fico sozinha, sinto que este amor me vai fazer continuar, mesmo que tudo acabe e que tomemos rumos diferentes... Eu tenho a certeza de que a memória deste amor estará, para sempre viva, porque ela está em mim.
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