Conto I
- Lembras-te de quando aqui chegámos?
Interrompo o nosso silêncio. Sentados num pequeno muro, à volta daquele campo de terra batida que tanto lhe diz. Tenho o meu queixo encostado ao seu ombro, o cheiro dele continua a ser aquilo que mais me acalma. Fecho os olhos e suspiro, roçando a minha face na sua antes de levar a minha cabeça ao seu ombro.
- Parecia tudo tão estranho... Estranho por não me sentir assim há tanto tempo.
Ele maneia a cabeça e solta um pequeno sorriso à luz do sol que irradia sobre nós, deixando o castanho daquela terra, que ainda de manhã era lama, ainda mais brilhante. É assim aquela terra. Inconstante, mas, ao mesmo tempo, tão natural. Talvez seja isso que o torne apaixonado por aqueles tons quentes de final de dia ou da chuva que cai apesar do calor que se impregna na nossa pele.
Levo a minha mão ao seu braço desnudo e sinto a sua pele macia com os meus dedos.
- A liberdade é meia estranha, não é?
Ele coloca a sua mão sobre a minha, levemente. Mesmo assim, ela pára de se mover para sentir os meus dedos que brincam com os seus.
- A liberdade não é estranha. Torna-se estranha quando a perdemos e depois a voltamos a encontrar.
Suspiro novamente e levo os meus lábios à sua nuca, deixando um leve beijo, roçando, depois aí o meu nariz, antes de voltar a encontrar o meu lugar no seu ombro.
- Sabes, houve alturas em que pensei que não seríamos capazes de ficar aqui. Que tudo não tinha passado de um capricho nosso... Que assim que experimentássemos estar sempre aqui, não seria o que tínhamos imaginado, aborrecer-nos-íamos e tudo chegaria ao fim... Tal como quando desejamos tanto algo, mas quando o temos não é aquilo que idealizámos...
Ele acena, levemente, com a cabeça.
- Mas, acabou por ser ainda melhor, não?
Agora, é a minha vez de sorrir.
- Quando te vi descalço a correr por este campo, aí soube que tudo estaria bem.
Ao contrário de toda a simplicidade de todos os gestos que partilhamos, subitamente, ele vira-se para mim. Abro os olhos e vejo a surpresa estampada no seu rosto.
- Sim. Foi quando te vi a correr por aqui descalço que deixei de ter medo. De ter medo por ti, por mim, por nós.
Ele sorri também e torna a olhar em frente, em silêncio. Ele já me compreendeu. O silêncio volta a estar entre nós. Ele leva a mão à terra quente.
- Ela faz parte de ti. A Liberdade desta terra faz parte de ti.
Coloco a mão sobre o seu peito.
- Ela está aqui, porque tu nasceste aqui. Cresceste aqui. Só aqui te poderias sentir, novamente, completo.
Ele leva a sua mão, agora, suja de terra, até à minha, que descansa no seu peito.
- Ela faz parte de nós.
Beijo-lhe a face.
- Sim, ela agora faz parte de nós. Daquilo que somos e daquilo que seremos.
Ele pega num punhado daquela terra e esfrega-o na minha mão. Noto que a sua camisola branca fica, também, um pouco amarela... Tal como todas as vezes que ele sai para estar naquele campo.
- E daquilo que fomos.
Aceno e sorrio.
- Sim. Fomos pó, agora somos terra.
Ele pega na minha mão e beija-a.
- A terra não termina.
Maneio a cabeça.
- Ela é muito mais profunda do que aquilo que conhecemos.
Ele continua a beijar a minha mão e suspira. Encosto a minha cabeça no seu ombro e fecho os olhos.
Ele volta a colocar a minha mão sobre o seu peito, ao mesmo tempo que não a larga.
- Cheguei cheio de medo. Há entrada daquela pobre casa. Não sabia o que estávamos aqui a fazer. Mas sentia algo de diferente. Era como se regressasse ao passado... Há vinte anos atrás... Mas melhor. Não estava sozinho e sentia que já não tinha de provar nada a ninguém. Estava, efectivamente, livre...
Abro os olhos e vejo que o seu olhar está no horizonte. Deixo-o continuar.
- E isso é assustador. Depois de tantos anos, como é poder voltar a ser livre? O medo de não o fazer, de não a voltar a sentir, como a senti quando era mais novo estava em mim todos os dias. Fui tentando colmatar isso com outras coisas... Mas cada vez que dava de caras com este campo, lembrava-me de tudo... Do suor, do cansaço e das lágrimas. Mas sabes do que é que me lembrava também? De como era bom correr por aqui descalço, sentir a leveza do final de tarde no meu rosto ou a luz do sol que é tão forte que encandeia.
Levanto a minha cabeça e ao ouvido sussurro-lhe.
- E isso prevaleceu.
- Claro.
Beijo-o pode detrás da sua orelha.
- Também as novas memórias que aqui criámos... – abraço-o com a minha outra mão – como quando fazemos amor no alpendre...
- A brisa quente que nos desperta o corpo...
Sorrio e beijo-o, novamente, no mesmo lugar.
De rompante, ele vira-se para mim. Por breves instantes, consigo ver no seu olhar o imenso amor que me tem. O mesmo que encontro em todas as manhãs que acorda ao meu lado, ou cada vez que me deseja um bom dia ou uma boa noite.
Os seus lábios tocam nos meus e assim ficamos por um pouco. A sentir-nos. Coloco as minhas mãos na sua face e desvio-me um pouco.
- Estamos onde devemos estar.
Um sorriso aberto adorna a sua face. Um sorriso que faz este amor ficar ainda mais vivo.
- Sim! - Ele levanta-se – Estamos onde devemos estar.
Ele descalça-se e começa a correr pelo campo.
Sorrio embevecida. Como é possível que algo tão simples tenha sido a peça que faltava para que ele, finalmente, pudesse sentir-se completo.
Em pouco tempo ele está de volta, à minha frente. Estende-me a sua mão.
- Anda! – Aquele brilho nos olhos é impossível de ignorar. É impossível não sucumbir à sua alegria. Levanto-me e deixo as minhas sandálias no muro. As nossas gargalhadas ecoam pelo campo vazio, correndo um atrás do outro.
A terra quente quase que me queima a planta dos pés. Mas nada disso se sente quando se prova a verdadeira essência daquilo que é ser livre.
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