O Amor Utópico

Amélia olhava para as pessoas à sua frente e sorria. João e Maria eram perfeitos um para o outro. Os seus rostos mostravam aquilo que devia ser a felicidade... Uma ligação muito pessoal, uma intimidade que se expressa nos pequenos gestos.
Ainda bem.
Eram felizes e isso é o que importa. 
Nada mais. 
Tudo vale a pena por isso... Tudo vale a pena para que aqueles a quem se ama sejam felizes.

Aos quarenta anos de idade, Amélia nunca tinha experimentado o amor. Sabia o que era, lia isso nos livros, ouvia o que era esse sentimento nas canções de vários músicos, via exemplos disso na televisão. E, secretamente, ela pensava que isso era um máximo. A possibilidade de encontrar alguém em quem se colocava todos os seus sentimentos e confiança para continuar a vida em conjunto... Alguém a quem podia abraçar, mas também poder dar-se ao luxo de se deixar abraçar... Tudo isso, agora, fazia parte da sua cabeça, como se pertencesse a um sonho longínquo, que tinha tomado as formas da eterna imaginação, sabendo que era uma utopia. 
Sim. 
Para Amélia, o amor puro era isso: uma utopia.

Amélia sorriu educadamente e saiu da sala onde João e Maria tinham dado a notícia de que iriam ser pais. Ela dirigiu-se para a porta, não sem antes pegar no seu casaco e na sua mala. Estava na hora de se ir embora, as pessoas não iriam notar pela sua falta. Por sua maestria e engenho, Amélia tinha conseguido construir essa maneira de estar: uma pessoa presente, a quem os outros podiam pedir ajuda, mas que era facilmente esquecida pela multidão. 
Ela não se importava... 
Ela já estava habituada e, por isso, tudo bem. 
Quando alguém reparava nela era sempre para apontar algo que ela tinha feito de errado, ou para falar sobre algo que ela tinha de estranho nas suas acções ou aparência, ou algo que a deixava envergonhada... Por isso, ela preferia que as pessoas não reparassem nela.

Amélia saía agora da sala e apertava o cachecol contra ao pescoço. Estava frio e hoje iria a pé para casa. Ela também não se importava com isso, até porque se sentia bem com a possibilidade de andar um pouco e sentir o frio na sua face. Ela sorriu ao pensar em como Sofia e Manuel se deveriam estar a divertir... Definitivamente, Amélia não pertencia ao mundo deles, mas conhecia-os através da empresa onde trabalhava. Pelo que tinha ouvido eles os dois tinham ido de férias para Bali... Como diriam os americanos, Sofia e Manuel deveria estar a "having the time of their lives"... E isso é óptimo. 

Amélia queria tentar estar presente quando eles regressassem para poder ouvir as suas histórias. Ela pensava que isso era fantástico e fazia sempre questão de ouvir esses relatos. Eram eles que alimentavam a sua imaginação, para que ela pudesse ter uma ideia de como eram esses lugares. Amélia nunca tinha viajado e sentia-se sempre pequenina em relação aos outros. Por uma razão, ou por outra, nunca tinha conseguido sair de onde estava e ela já tinha desistido disso também, porém, ela viajava permanentemente para outros locais, através da sua imaginação, durante todos os seus dias e, isso, ninguém lhe podia tirar.

Ela estava já perto de casa e agora chovia. 
Ela não importava. 
Em breve estaria no seu quarto e poderia mudar de roupa. Amélia agradecia a água que caía no seu rosto ao mesmo tempo que procurava a chave na sua mala. 

Muitas vezes pensava como tudo seria noutra vida... Pensava sempre nisso... Frequentemente, dizia "noutra vida eu fazia isto ou aquilo... Noutra vida fui isto ou aquilo". Talvez fizesse isso porque gostava sempre de imaginar-se numa outra vida. Talvez por saber que nunca iria sair daquilo que era, do meio onde estava.

Finalmente, Amélia chegava a casa. 
Foi para o seu quarto retirou o seu casaco molhado. Foi até à casa de banho e lavou a cara. Secou o seu rosto, mas as lágrimas teimavam em cair. Ela parou um pouco e deixou o choro continuar, baixinho, sem fazer muito barulho. E deixou-se estar assim. Amélia não estava triste, zangada, ou frustrada. Agora estava apenas cansada. Por vezes, acontece-lhe isso: o cansaço toma conta de si e ela deixa-se ficar. 
Pode ser por um minuto ao dois, mas ela deixa-se ficar.

A verdade, é que ela estava realmente cansada... Estava cansada há vários anos, mas nada podia fazer em relação a isso. Só podia continuar com as suas rotinas e alegrar-se sempre com a felicidade de quem a rodeia, pois apenas isso lhe dava a possibilidade de alimentar a sua imaginação e assim criar um mundo só seu, onde a perda, a mentira, o engano, o não reconhecimento e a fraqueza não existiam. Só o amor. Só o amor e a compreensão. Nada mais.


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