Voltar à Tona de Água

O quarto estava frio. Nada parecia ter grande côr. Isabel olha para o espaço em seu redor e, apesar de ser quase de noite, não tem qualquer intenção de ligar a luz. Está de pé durante algum tempo e olha para a janela... Depois para a estante e, no fim, para a secretária. Acaba por sentar-se na cama. E assim fica a olhar para o nada.

Isabel está cansada. Sente-se muito cansada de toda a sua vida. De nunca conseguir alcançar aquilo que mais deseja... De se sentir a afundar... De se sentir, diariamente, num beco escuro e sem saída... Está cansada de chorar às escondidas, está cansada de nunca conseguir ter aquilo que imagina... Está cansada de estar cansada.

Novamente, Isabel fecha os olhos e imagina cada detalhe do lugar específico onde deseja estar. Na sua cabeça, ela consegue delinear cada traço daquele espaço, a cor da sua luz e é capaz de se ver ali... A sorrir e a ouvir aquela canção que tanto gosta. Uma lágrima escorre pelo seu rosto, porque Isabel sabe que não tem nada daquilo. Ela sabe que nunca mais poderá regressar àquele local... A paz de estar completamente em harmonia é agora uma completa miragem. Uma produção da sua mente. Porque não é real. Não vai ser real.
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Encostado à porta do apartamento, André lutava consigo mesmo, sem saber se deveria ou não entrar. Nos últimos meses tudo estava diferente. É certo que os últimos anos não tinham sido fáceis... Deus... Quantas vezes ele pensou como é que ela tinha conseguido viver e suportar tudo aquilo... Porém, por alguma razão que ele desconhece, ela está diferente. Antes tudo parecia mais fácil, porque eles estavam juntos. Sempre lidaram com tudo em conjunto, mas há meses que André percebia que já não era assim. Ela fechava-se mais não só em relação a ele mas também a ela própria. E isso assustava-o. No entanto, e por mais que ele tentasse agarrá-la, André sentia que ela escorregava pelos seus dedos como grãos de areia. Mesmo confrontando-a, querendo que ela expressasse de alguma forma o seu sofrimento, nem que fosse a gritar na sua cara, ela nada dizia. O silêncio era a sua resposta aos confrontos que ele próprio provocava.

Ele suspirou e fechou os olhos.

André não falava com ela há alguns dias. Horários desencontrados e também várias razões que ela arranjava para não estar com ele... Situações e distâncias que apenas contribuíam para que o muro que ela colocava entre eles se tornasse cada vez maior. A verdade é que, por mais conversas que tivessem, ele parecia ter perdido a capacidade de chegar até ela.

André olhou para a chave que tinha na sua mão. Virou-se e colocou-a na fechadura e abriu a porta.
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Isabel abriu os olhos de repente ao ouvir o som da chave na porta de entrada. Sem avisar, a desilusão percorreu todo o seu corpo. Ela só queria estar sozinha. Neste momento não queria estar com mais ninguém do que senão ela, muito embora tivesse consciência de que essa era uma vontade que a acompanhava há meses.

Ela estava a tentar afastar-se dele. Porque ela não queria que ele ficasse ali, sempre com ela. Isabel sentia-se danificada, tal como um objecto. Mais do que isso até: sentia-se partida ao meio. E quando um objecto está estragado e sem conserto aquilo que fazemos é deitá-lo fora. Ela esperava que ele a deitasse, finalmente, fora.

Ela era cobarde. Isabel sabia-o. Ela podia ser clara e acabar tudo, mas nem para isso se sentia com forças. Então afastava-se... Até porque esse afastamento inicial acabou por ser inconsciente. Ela não tinha colcado a distância entre eles com o objectivo definido de fazer com que ele a deixasse. Não. Foi acontecendo com a sua vontade constante em guardar tudo aquilo que sofria dentro de si. Mas, com o decorrer do tempo, e, tomando consciência de como ela se tinha fechado, ela deixou-se estar. Eventualmente, ele iria sair e deixá-la. E ser feliz. Até porque isso era das poucas coisas que interessavam a Isabel: que ele fosse verdadeiramente feliz.
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André entrava em casa e o silêncio parecia ser o seu único ocupante. Mas ele tinha a certeza de que a iria encontrar ali. As luzes estavam desligadas e até o som dos ponteiros do relógio da sala ele conseguia descortinar. Olhou para o seu lado direito onde estava a porta que dava para o quarto. Esta estava aberta. Seguiu nessa direcção e parou na ombreira da porta, decifrando aquela figura sentada na cama a olhar para a janela. Ela estava de costas para ele, mas, ainda assim, André conseguia ver as diferenças na sua postura corporal. A mulher vibrante e alegre que tinha sido um dia, parecia ter deixado aquele corpo, dando lugar a alguém frio, distante e nostálgico. Por um momento, ele ficou apenas ali a olhar e a pensar naquilo que tinham sido e naquilo em que se tinham transformado.
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A presença dele no quarto era notória. Até pelo simples facto de ela não voltar a ouvir o som dos seus passos a ecoar pela casa. Ela engoliu em seco e levou a mão à sua face para limpar a lágrima que aí tinha caído. Os passos voltavam-se a ouvir, agora cada vez mais perto dela. Isabel endireitou-se e deixou-se ficar a admirar a luz da noite que começava a entrar no quarto. Ela estava preparada para mais alguma conversa de circunstância, aquilo que se tinha habituado a manter com André nos últimos tempos, para depois passar às suas perguntas que normalmente começavam com "estás bem?"

Suspirou.

André parou ao seu lado e nada disse. Isabel sentia agora o peso da sua mão no seu ombro. Este simples gesto levou-a a fechar os olhos.
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Chegando ao lado de Isabel, André não conseguiu suprimir a sua vontade de mostrar que estava presente. Tinha desistido de perguntar o que quer que fosse. Nem o porquê de ela estar em casa, quando lhe havia dito que não estaria. As palavras já não tinham sentido entre eles e ele esperava que apenas a sua presença física fosse suficiente para fazer com que ela voltasse a deixá-lo entrar na sua vida. 
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Com o medo irracional de que Isabel se desviasse, ele colocou a sua mão ao de leve no ombro esquerdo dela. Surpreendentemente, ela apenas fechava os olhos. Uma sensação de alívio percorreu todo o seu corpo e, pela primeira vez, ele pensava que nem tudo estava perdido.

Aproveitou a permissão que ela lhe dava e deixou-se ficar assim um pouco. Até que ele decidiu dar o passo seguinte. Retirou a mão do ombro de Isabel e moveu-se para se sentar do seu lado direito. Pelo movimento da cama, Isabel sentia o corpo de André, agora ao pé do seu. 

Ela ficou paralisada. 
Friamente, ela sabia que tinha de sair dali, mas, por outro lado, ela descobria agora que estava também demasiado cansada de o afastar continuamente.

André colocava o braço nas costas de Isabel, provocando nela uma sensação de protecção que não sentia há muito tempo. E essa sensação em si trouxe de novo as lágrimas aos seus olhos. Uma sensação de protecção que era tão esmagadora para ela como para ele. Com uma força e motivação que julgava ter perdido, com o seu abraço, André puxava o corpo de Isabel para junto do seu peito e abraçou-a. Abraçou-a como há muito tempo não a abraçava.

Ela abria, finalmente, os seus olhos e deixou as lágrimas escorrer pelo seu rosto. Lágrimas que caiam na camisola de André, que agora parecia a Isabel, uma almofada. Uma almofada onde ela podia repousar todas as suas tristezas. André apertava o seu abraço, para o assegurar de que ela estava mesmo ali... De que desta vez ela não tinha desaparecido, sem desculpas ou desvios. A água também inundava os olhos de André ao mesmo tempo que sentia os próprios braços de Isabel a apertar cada vez mais.

Ele olhou para ela e os olhos castanhos de Isabel estavam já à sua espera. Até que, entre
um soluço, ele ouve, novamente, a voz real de Isabel, não aquela que ela tinha vindo a criar há meses atrás.
- Desculpa, André.

Os olhos dele apenas diziam que ele estava aliviado. Era impossível ele esconder isso e André apenas sussurrou:
- Shshsh. Estou aqui.

E ali ficaram. André não a ia largar, agora que ela tinha finalmente regressado aos seus braços. Talvez, desta forma, Isabel pudesse ter ali a força para encontrar o caminho para regressar à tona de água e voltar a respirar.

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Este texto foi inscrito tendo por base o tema "Come Back To Me" de James Morrison


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Nota: Para quem lê os meus textos já deve estar farto de perceber que muitos deles são inspirados em canções do James Morrison. Já há muito tempo que tinha vontade de escrever sobre este tema em particular. A verdade é que muitas vezes não consigo evitar a minha imaginação quando oiço as canções deste músico britânico... Esperemos que seja de James Morrison ou de outros músicos que a minha imaginação continue...  

Grazzie a tutti voi, que ainda lêem aquilo que escrevo!    

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