O Sonho de Ser Livre
Quase todos os dias, Joana lia uma página do diário da Tia Rosa. Sentia muito a falta dela. A Tia tinha morrido há um ano, ainda nova, quarenta e poucos anos. Joana, de apenas 20 anos, gostava muito dela e apesar da diferença de idades davam-se muito bem. A tia Rosa sempre tinha estado consigo e agora o vazio que tinha deixado era enorme. A tia disse-lhe onde estavam os seus diários e autorizou-a a lê-los assim que morresse. Joana tinha acompanhado a fase final da doença da tia que não permitiu que vivesse muito tempo entre os tratamentos. Cada vez que Joana lia um pouco da sua história, na primeira pessoa, esta era um exemplo de força. Mas mostrava também um lado da sua tia que desconhecia por completo
"25 de Setembro de 2001
Hoje voltei a chegar a casa a horas a que me tinha proposto. Estou tão cansada! É como se tudo aquilo em que tocasse se estragasse. É como se estivesse completamente sozinha. Sei bem que estarei sempre só, mas às vezes custa tanto levar este barco. Custa-me mesmo. É um vazio tão grande que se torna numa dor aguda que me está a furar o meu coração aos pouquinhos e, por vezes, sinto que apenas estou à espera que o fure por completo.
Desde cedo que sei que apenas sirvo para uma coisa: ajudar. Não quero menosprezar esse destino. É importante. As outras pessoas só vão ser felizes se tiveram alguém ao seu lado que as possa ajudar quando precisarem. E só aí, quando quem ajudo consegue ser feliz, é que sinto que fiz o que estava correcto e que estou a cumprir o meu propósito.
Na viagem de regresso a casa ouvi uma canção que me fez chorar. Chorar de saudade dos tempos em que sonhava. Em que sonhava que nunca estaria sozinha. Tempos em que sonhava que ia ter alguém ao meu lado. Alguém que agora chegasse, enquanto estou a escrever, pegasse em mim e me levasse para longe, longe de tudo, me desse um abraço verdadeiro e me deixasse ficar ali o tempo que quisesse. Tempos em que sonhava em ter amigos que são como irmãos. Onde houvesse partilha. Todos punham os seus problemas na mesa e todos ouviam com atenção. Que saudades...
Na realidade tudo está muito diferente daquilo que alguma vez imaginei. Ou melhor dizendo, que uma adolescente sonha. Uma das coisas que eu mais queria era ser a melhor em qualquer coisa. Em ser livre. Como eu sonhava em ser livre. Tomar as minhas decisões, não ter preocupações nem obrigações. E, depois mais tarde, partilhá-las com alguém que estivesse sempre comigo, que nunca me deixasse perder por aí. Alguém que não me deixasse cair. Como precisava disso agora. Agora que sinto que estou prestes a cair de um décimo andar.
Agora que aqui escrevo acredito que nunca fui livre, excepto naquelas horas em que me baldei às aulas ou os professores faltavam. Ai era... E fui feliz. Tirando isso nunca tive a oportunidade de ser livre. De ser uma pessoa normal. De viver tudo o que as pessoas normais vivem. Talvez isso explique a minha falta de jeito e a imensa vergonha que tenho quando faço alguma coisa de mal.
Hoje tive a capacidade de suster o choro por uma dúzia de vezes. Acho que aí me portei bem. Nunca tive o à vontade para chorar em frente de quem quer que fosse. Com a minha postura sempre habituei todas as pessoas a não se preocuparem comigo. Nunca quis incomodar, porque sempre achei que cada uma tinha os seus problemas e precisavam era de ajuda para resolvê-los. Não tinham a obrigação de me aguentar. Talvez seja por isso que me sinta sozinha como um cão. Agora entendo que isso também faz parte de construir uma verdadeira amizade. Ter a abertura para chorar sempre que for preciso. Não consegui perceber isso na altura certa, agora tenho de viver assim porque sei que não vou conseguir mudar a minha forma de ser.
Sei que hoje cumpri um pouco da minha missão: consegui com que um amigo tivesse mais tempo para se divertir com outras pessoas. Contribuí um pouco para isso e isso também me faz sentir bem. Ele também merece sair um pouco dos seus problemas e espairecer. Ajudar nisso é óptimo. Talvez até tenha sido a melhor parte do meu dia.
Hoje ficou claro que, mais do que nunca, tenho de me capacitar disso: ajudar os outros implica guardar todo o meu sofrimento para mim, porque ninguém merece arcar com a minha dor. Ela só pode incomodar a uma só pessoa: a mim. As outras têm que ser felizes e eu tenho de as ajudar nessa parte: com um ombro amigo, com uma palavra de conforto, como um exemplo de persistência e mão amiga para que não desistam daquilo que querem. São as únicas coisas que sei e posso fazer.
Talvez para diminuir um pouco o meu sofrimento eu devesse deixar de insistir em fazer coisas e em ter coisas que não me servem de muito, porque não são feitas para mim e eu não sou feita para elas. Tenho também de me conformar com isso. De deixar de querer ser uma pessoas normal, deixar de querer desenvolver as mesmas apetências de pessoas normais. Eu não tive um crescimento num ambiente normal, não tenho um feitio de uma pessoa normal. Eu não sou uma pessoa normal. E eu tenho de me resignar a isso.
Estou a tentar. Mas hoje foi difícil. Aliás, ultimamente tem sido difícil. Que não desista pelo caminho e me concentre naquilo que tenho de fazer pelos outros. Deus me ajude."
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