A História da Tia Nita
"Ele era alto, tinha os olhos azuis e uma presença inigualável. Ou pelo menos penso que era assim. O cabelo era claro, como fios de ouro. Tinha barba e cada vez que sorria era como se tudo à sua volta ganhasse outra vida. Era muito divertido, sabes? Bem disposto. Era talvez o melhor advogado naquele escritório. Teve grandes casos nas mãos e ganhou os mais importantes. Detestava perder, mas acabava por se reinventar. A minha secretária ficava logo no início da divisão. A porta do seu escritório ficava perto e,na primeira vez que o vi foi exactamente aí. Era o meu primeiro dia e não fazia ideia do que aí vinha. Estava na recepção quando uma das portas abre. Aquele porte distinto. Fiquei de imediato vidrada. Como ele era bonito..."
A minha tia Nita parecia contar a história da sua vida. Sentadas na sala de estar, ela está na sua habitual poltrona a olhar para o jardim através da enorme janela que deixava entrar tanta luz
que ao final do dia ainda iluminava toda a divisão. De repente virou-se para mim, agarrou nas minhas mãos e prosseguiu.
"Mal sabia que ia trabalhar directamente com ele. Era uma simpatia. «Em que posso ajudar?» foram as primeiras palavras que me dirigiu. Fiquei completamente perdida na imensidão daquele azul, como se fosse o mar. E foi aí. Foi precisamente aí que me apaixonei. Até hoje".
Senti um baque no coração. Sempre tinha conhecido a minha tia Nita como solteira. Nunca tinha casado nem tinha ficado noiva e nem sequer tinha tido um namorado. Sempre a tinha visto assim: a cuidar dos sobrinhos, como era o meu caso.
"Não fiques com essa cara. Nunca se passou nada entre nós. Mas desde aquele dia que me apaixonei e preservei isso dentro de mim. É muito estranho, não é?"
Foi o que lhe perguntei e a resposta foi peremptória: sim.
"Um homem como ele nunca ia olhar para mim dessa forma. Soube isso também desde aquele primeiro momento. O Afonso era maravilhoso. E um desses nunca está sozinho. Conheci bem a sua esposa. Na altura ainda não eram casados, mas era fácil perceber que esse era o passo seguinte. Eles faziam um par muito bonito, tal como aqueles que vemos nas revistas, porém muito melhor. Eles amavam-se verdadeiramente e ela era uma querida. A Catarina... Era boa pessoa. É claro que quando percebi que estavam juntos fiquei triste, uma pessoa fica sempre. Mas depois passa, porque eu sabia que ele era feliz. E isso também me deixava contente. O amor não é egoísta, não é certo? Acredito que estejam juntos até hoje."
Tudo o que me acabava de contar fez-me sentir pequenina. Como era possível alguém ser assim... A minha tia Nita surpreendia-me pela sua história, mas, mais do que isso, pela sua nobreza e bondade. Algo que apenas o sofrimento de amar alguém que nunca teve podia trazer.
"Perguntas-me porque eu não podia ter alguém assim? Claro que não! Nunca soube das artes da sedução e não tinha nada que ver com as modas nem com as mulheres em geral. E isso mantenho. Não sinto necessidade em andar sempre arranjada ou pintada. Entendo pouco de roupa e não tenho muito jeito para me comportar junto dos homens. Nunca o tive."
E a solidão, como se lida com isso?
"Tendo-vos e com a companhia dos meus amigos. Mas sabes uma coisa? Todos os dias me lembro dele. Antes de adormecer, fecho os olhos e recordo-me da sua face e dos seus gestos. Falávamos bastante e sempre o ajudei. Em tudo... Tanto que ele quis que fosse madrinha do seu primeiro filho, mas recusei. Até que acabei por sair daquele escritório. São tantas as recordações..."
Fazia-se tarde. No meio desta confissão, a mãe chamou-nos para jantar. Durante toda a refeição e todo o serão esta história não me saía da cabeça. Quando a minha tia Nita se levantou para ir dormir, decidi esperar que ela entrasse no quarto. Poucos minutos depois, o tempo suficiente para ela mudar de roupa e deitar-se, levantei-me e fui directa ao seu quarto. Bati na porta e entrei. Ela estava já deitada. Aproximei-me da sua cama, dei-lhe a minha mão e disse-lhe:
- Tia Nita... Feche os olhos e diga-me o que vê antes de adormecer.
Ela sorriu. Sabia bem do que lhe estava a falar. Ela cerrou os olhos e deixou estar aquele sorriso.
- Estamos sentados a tomar um café. Ele tem a sua mão sobre a minha e olha-me nos olhos. Estou perdida no seu azul quando ele me pergunta se alguma vez amei alguém.
Silêncio. A minha Tia Nita continua a sorrir. Dou-lhe um beijo, levanto-me sem fazer barulho. Apago a luz e saio do quarto, e, muito levemente, fecho a porta.
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