A invisibilidade de Camila

O céu estava escuro, mas ela decidiu sair de casa na mesma. Queria poder sentir o vento fresco a bater-lhe na cara. Ao menos isso ela podia fazer sem pedir autorização a ninguém, sem ter em conta o que quer que fosse. Àquela hora, no final da tarde, as ruas estavam cheias. A maioria das pessoas regressava do trabalho ou da escola o que tornava ainda mais fácil, Camila passar despercebida entre todos. Muitas vezes ela tinha a sensação de que podia chorar, rir sozinha e até cantar baixinho sem ninguém dar conta. 
Era verão, por isso, ainda não tinha anoitecido. Fechou os olhos enquanto andava calmamente. Ouvia risos, gritos, conversas, palavras soltas... A agitação habitual no fim de mais uma jornada. Hoje, Camila estava particularmente cansada. Ainda não sabia para o que servia ao certo. Era muito possível ela não servir para grande coisa. Ela gostava de ser tudo aquilo que não era, por isso sonhava. Sonhava... E, naquela calçada, ela já estava a sonhar.
 
Esta era uma das poucas formas de sentir alegria, porque, ela nos seus sonhos era muito feliz. Era como aquelas pessoas que não têm de se esforçar muito para conseguir aquilo que querem, porque, na realidade, é como se as coisas estivessem lá à sua espera. Todos nós conhecemos alguém assim, que tem as características necessárias para ter sucesso. E conseguem sê-lo. Parece que nasceram para serem assim e conseguem mesmo ser assim, é como se fosse um destino ao qual não conseguem escapar. Quando Camila sonhava ela também era assim. 

No seus sonhos ela conseguia sair daquela cidade e viajava. Conhecia as capitais de vários países, provava a sua comida típica e vivia histórias inesquecíveis. Na verdade, uma das coisas que Camila mais gostava de fazer quando estava numa livraria era ver os guias turísticos dos destinos com os quais sonhava. Discretamente, perdia-se naquelas páginas que a deixavam estar mais próxima daqueles locais.

Levou um grande empurrão e abriu os olhos. Era melhor sair daquele local, porque ia acabar por cair, pois com toda a certeza se iria distrair nos seus pensamentos e as pessoas estavam cheias de pressa para chegar a casa. Decidiu sair das principais ruas do centro da cidade e começou a andar mais perto dos bairros e das ruas solitárias. E, de olhos bem abertos, começou a sonhar novamente.

Camila não tinha jeito para fazer muita coisa nem tinha nenhum dom especial. Às vezes tinha a sensação de que não era muito esperta. Perspicácia e discernimento eram duas características com as quais não tinha sido abençoada. Mas ela adorava cantar e dançar. Soava pessimamente e os seus passos de dança eram ridículos, por isso só cantava e dançava em casa e, mesmo assim, muito timidamente. Então naquele seu sonho, ela era uma cantora de jazz muito conhecida pela sua animação em palco. Conseguia combinar muito bem a sua voz e a sua dança e todos gostavam de a ouvir. Ela adorava aquilo que fazia e divertia-se imenso. Tinha uma óptima relação com os músicos da sua banda e escrevia as suas próprias letras.

Agora sim, começava a ficar escuro. Camila olhou para o relógio e percebeu que tinha de ir para casa. Iriam perguntar por ela e ela não gostava muito que lhe fizessem perguntas, por isso preferia evitar que houvesse motivos para que essas mesmas questões fossem feitas. Daí que pôs os pés a caminho de regresso a casa. 

Mas, antes de pensar nisso, podia continuar com o seu sonho. Aí ela era livre, completamente livre. Era dona de si e apenas tinha de fazer aquilo com que se sentia bem. Não aceitava ser espezinhada e controlada. Era frontal. Dizia aquilo que tinha a dizer sem ter medo de ninguém e era uma pessoa cheia de coragem. Tudo o que estava à sua volta podia cair que ela, com a sua força, iria reerguer. Camila sorriu. Apesar de continuar a andar naquela estrada era como se não estivesse ali.

De repente, um enorme estrondo ecoou por toda a rua. Vidros partidos e buzinas por todo o lado. Camila assustou-se com todo aquele barulho. Olhou em frente e percebeu que dois carros tinham batido. As pessoas já estavam fora dos automóveis a gritar uma com a outra. Camila abanou a cabeça e acelerou o passo. Ela tinha de chegar a casa, já era tarde. E, neste seu caminho, ela lembrou-se que ainda podia escrever qualquer coisa naquele dia. Ela gostava muito de escrever. Na verdade, a escrita era a sua grande liberdade. Ela podia escrever sobre o que quisesse, podia inventar ou não, podia escrever sobre quem quisesse, sem dar contas a ninguém, a absolutamente ninguém. Era aí que ela podia saber o que era ser livre e isso era das poucas coisas que podia aproveitar.

Aquele estrondo tinha-a feito acordar verdadeiramente. Tudo estava igual. O mesmo sítio, a mesma rua, as mesmas pessoas. Estava já com a chave na porta quando se deu conta que tudo voltava ao mesmo. Aquela sensação de vazio voltou a preenchê-la. Entrou em casa, cumprimentou as pessoas e foi directa para o seu quarto. Assim que se sentou na cadeira da secretária foi como se um peso lhe caísse em cima da cabeça. Tal como ouvia numa canção "de que serve sonhar, se a dor não acaba?"

A verdade é que Camila sabia que ela não termina. Com aquela canção nos lábios, iria escrever um pouco. No dia seguinte tinha de arranjar forças, novamente, para se levantar e enfrentar tudo de novo, passando sempre muito discreta. Não vale a pena fazer-se notar na sombra da sua vida.

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