"Foi Tudo Mentira"

 "Foi tudo Mentira".

Às vezes ouvia a minha tia dizer estas palavras... Normalmente, era quando pensava que estava sozinha e eu chegava à cozinha. Quando era miúdo não compreendia bem o porquê de ela dizer isto. Saí-lhe sempre num tom baixo, como se estivesse a falar para si própria, a dar um recado a si mesma. Bem lhe perguntava o que ela estava a dizer, mas no seu doce sorriso ela nunca me respondia... Agora que penso nisso, percebo como ela mudava constantemente de assunto.

Sempre adorei a minha tia. Sempre foi muito doce comigo e tinha uma bonita gargalhada. Sei que tomou conta de mim e incutiu-me esta vontade de não olhar só para aquilo que ou queria ou sentia, mas também para os outros. Talvez seja por isso que lhe fui percebendo o seu olhar triste. O olhar de quem perdeu algo. Por vezes, assomava-lhe uma tristeza que me deixava paralisado. Ela disfarçava sempre. Nunca a vi chorar sem ser num filme ou se tivesse lido algo bonito. Mas eu conseguia ver como a tristeza a acompanhava sempre... mesmo por detrás de todas as suas gargalhadas sonoras e que enchiam a sala de jantar quando a família se juntava.

Sou demasiado desembaraçado e não soube guardar essas questões para mim. Quando, na minha juventude, comecei a confrontar-me com essa curiosidade em relação à minha tia, decidi perguntar-lhe diretamente. "O que foi tudo mentira?", questionei-a no meio de um sorriso. Sabia que quando eu sorria, essa era uma das coisas de que a minha tia mais gostava. 

Quando as palavras saíram da minha boca, notei-lhe aquela tristeza profunda a ensombrar os seus olhos. Mas, desta vez, ela não disfarçou. Mostrou-me o seu sorriso mais triste.

"O único amor que vivi".

Percebi, naquela momento, que ela guardava em si, nas profundezas do seu íntimo, algo demasiado duro que, agora, eu não sabia se estava preparado para ouvir. Sempre olhei para a minha tia como uma pessoa encantadora e nunca tinha percebido porque nunca lhe tinha conhecido ninguém.

"Eu já amei, mas foi tudo mentira. Iludi-me, mas eu sei que todas as suas palavras e os seus gestos foram mentira".

Senti pela minha tia aquilo que eu sei que ela sente por si própria: pena. Tenho vergonha de não ter sentido compaixão ao início. Isso veio depois, enquanto ela me ia relatando por simples e poucas palavras o que lhe tinha sucedido. Uma história tão triste que a tornou no que era. Ela gostava de mim, dos avós, dos meus pais, claro que sim. Mas, nunca se sentira completa. Haverá algo mais aterrador do que nunca nos sentirmos na vida que sonhámos ter?

"A única vez que senti que estava a viver a minha vida foi com ele. Mas, no fim, isso também foi mentira. Demorei muito tempo a capacitar-me de que a minha vida era o que eu já tinha, não aquilo que ele me fez sentir e viver. Isso foi mentira."

Abracei-a. Isso explicava a sua tristeza no olhar que sempre lhe conheci. 

Até aos dias de hoje, quando penso na minha tia lembro-me da sua bondade e como era carinhosa, mas recordo-me, também, da sua voz destruída enquanto me contava aquela história. Será a vida, para alguns, uma linha recta, vazia de ilusões, de surpresa, de entusiasmo? Deixa-me triste pensar que a minha tia teve de viver assim, como se nunca se tivesse conseguido libertar de uma qualquer vontade superior e imbatível que não a deixava viver plenamente. Que nunca lhe tinha dado a oportunidade de viver uma boa e bonita história que a preenchesse. Que nunca lhe tinha dado a oportunidade de escolher a sua vida. Que nunca lhe tinha dado a oportunidade de ser feliz. Eram as "vicissitudes da vida", como dizia.

Naquela conversa entendi, finalmente, porque me dizia ela: "Deus queira que sejas feliz, livre. Isso é o mais importante".

Sim. É. E o que sei é que isso não está mesmo ao alcance de todos.

Hoje acordei com saudades da minha tia. Oxalá, esteja agora sem a tristeza no seu olhar.


Imagem: "La Scapigliata" di Leonardo da Vinci.

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