Catarse

Gostava mesmo que fôssemos dois atores numa peça de teatro. Em cima do palco, não precisaríamos de qualquer público, nós os dois seriamos suficientes para este espetáculo. Virados um para o outro, com o olhar um no outro, tal como deve ser o confronto entre duas personagens.

Há uma altura em que os protagonistas da história se confrontam, não é? Um confronto de palavras, de gestos, de posturas, de silêncios. Um confronto de silêncios... Consegues imaginar como gostaria de representar isso contigo? Claro que não. Agora, imaginas lá tu que eu sequer existo ou que ainda penso em ti.

Nós os dois, na penumbra do palco, tu perto de mim, eu perto de ti, apenas a olhar-nos em silêncio. Primeiro, hirtos, depois, ao de leve, moveríamos a cabeça, o meu olhar triste falaria muito mais do que o teu olhar surpreso poderia aguentar.

No tempo que considerássemos suficiente, o silêncio terminaria. E eu perguntar-te-ia: não tens qualquer apreço por mim, pois não? Ali, no palco, com apenas os deuses da representação como testemunhas, dir-me-ias que não. Dir-me-ias que eu sempre tivera razão: que nunca sentiste nada por mim, nem sequer o mínimo apreço. Isso magoar-me-ia, mas ia fazer-me perceber que, tal como sempre eu tinha imaginado (por razões que desconheço o meu coração nunca tinha aceitado), para ti fui nada, quando, para mim, foste muito.

E é esse confronto entre o nada e o muito que eu quero ver ali, naquele palco. Não dirias nada ao descobrires que foi muito, ficarias em silêncio. Como eu gostaria de ouvir esse teu silêncio que significaria a tua tomada de consciência do que me fizeste e que eu... eu não merecia.

Talvez o teu silêncio me levasse a uma catarse e eu não fosse, finalmente, capaz de me calar e te conseguisse expressar toda a dor que tenho guardada em mim desde que desapareceste. Como gostaria de que nesta nossa peça eu não me calasse nem aceitasse toda esta dor que me deste. Aqui, nesta conversa a dois, eu iria tirá-la de mim e deixá-la cá fora. Não, não te a quereria devolver. Não quereria que tu ficasses com ela. Porra! Eu não quero que ninguém fique com ela, eu só quero ficar sem ela.

Ali, naquele palco, naquele confronto ao qual não conseguiríamos fugir eu iria, finalmente, aceitar que fui nada. Tu irias compreender como a tua crueldade me tinha matado. Sairíamos, cada um para seu lado do palco, sem condescendência um do outro. A minha personagem saberia que estava pronta para partir enquanto tu ficarias a saber que o teu medo me tinha matado, que o teu medo tinha matado qualquer espécie de esperança que poderia existir.

Talvez, se representássemos este confronto em palco, esta peça se tornasse numa dura tragédia. Afinal, que mal tem isso? Diz-se por aí que o teatro serve não só para fazer sonhar como para olhar para a vida real. Não será, também, a vida real uma tragédia?

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