Numa Outra Vida

São muitas as vezes em que penso como seria maravilhoso se, realmente, tivéssemos vivido outras vidas noutros tempos. É um pouco apaziguador imaginar-se isso: como seria a nossa vida passada?

Eu gosto de imaginar que numa das minhas vidas eu estive rodeada de arte. Talvez tenha crescido numa
pequena vila onde as casas são coloridas, dividida por um rio, com monumentos antigos e com os quais aprendi a conviver. Sempre curiosa para saber a sua história, a sua origem, a razão de existirem. O ar é inundado de cheiros doces no inverno e frescos no verão como se a própria gastronomia se adaptasse à mudança do tempo.

Concerteza que vivi uma época com conturbações sociais. Tenho a certeza disso assim como tenho a certeza de que fui capaz de defender aquilo em que acreditava: uma maior justiça no mundo, mais empatia, mais igualdade de oportunidades, mais solidariedade. Deus... Tenho mesmo a certeza que na minha outra vida fui capaz de defender a minha, a nossa, liberdade. Não sei bem de que forma, talvez pela ajuda ao próximo ou através da minha pintura ou... ou da minha escrita. Oh1 Sim, é claro. Foi também através da minha escrita.

Talvez também a minha escrita nos tenha feito encontrar. Tal como daquela vez. A diferença é que não te perdi. Sim! É claro que nos encontrámos nessa vida. Só a ti te poderia ter encontrado ou será que, por uma outra vez, foste tu que me encontraste? Sim. Tenho a certeza de que também aqui tu foste capaz de me ver no meio das pessoas. Com o teu olhar cativante conseguiste chegar até mim e assim ficámos. Perdidos no meio de toda aquela multidão, cientes do nosso caminho através do olhar que cruzámos. E das palavras que trocámos. Como falámos naquela noite junto à praça com velas acesas por um qualquer motivo que já não me recordo. Mas que nos fez ir até ali. Ficámos sentados na escadaria branca a falar daquilo que é a vida. E logo aí falámos da necessidade do compromisso despreocupado. Mal sabíamos nós que ali tínhamos encontrado a forma de nunca mais estarmos sós na vida. Eu trazia uma boina vermelha e quando tocaste nela ao de leve calámo-nos. Como se os teus lábios perto dos meus fizessem com que eu deixasse de pensar. E que bom que era quando me fazias deixar de pensar. Apenas sentir. Apenas sentir-te.

A tua música preencheu a nossa casa... A nossa casa que cheirava a tinta de óleo, principalmente na sala. Não nos preocupávamos muito com isso. Esse cheiro estava entranhado em tudo na nossa sala de jantar onde tínhamos o cavalete. Não porque essa era a nossa vida, mas gostávamos de pintar. Eu gostava de pintar principalmente quando te ouvia a tocar guitarra. Num dos cantos da sala era onde tu colocavas a tua guitarra que tratavas com todo o cuidado. E parece-me que tocavas canções de amor, mas, também, divertidas. E cantavas... Deus, como cantavas. Por vezes, quando fecho os olhos oiço essa tua voz rouca que inundava o espaço, o meu corpo e a minha mente.

É verdade que não foi sempre fácil. Claro que não. Zangámo-nos várias vezes. Muito porque eu não conseguia compreender porque não te davas mais às pessoas, porque não conseguias admitir os teus erros. Como se... Como se tivesses medo de reconhecer que tinhas estado mal. Tu tinhas tantos problemas em reconhecer o erro que isso, por vezes, deixava-me exasperada. Essa foi uma das maiores barreiras entra nós. Porém, eu amei-te também aí. Nessa tua imensa dificuldade em reconheceres os teus erros. Eu amei todas as tuas dimensões. Da mesma forma que eu sei que também me amaste em cada um dos meus medos. O medo de não ser suficiente, de não te servir, de não te compreender. Sei bem como os meus silêncios poderiam preencher toda a casa por dias e como isso te deixava incapaz de agir.

O extraordinário é que nesta minha outra vida fomos sempre capazes de nos encontrar. Mesmo zangados e desiludidos um com o outro fomos capazes de nos encontrar. E isso nunca mudou. Nem quando vieram os filhos. Foi tudo natural. Foi tudo tão natural como foi sempre tudo contigo. Foi simples, harmonioso e, ao mesmo tempo, desafiante.

Foi esse entusiasmo que colocavas em tudo a causa de me sentir tão cativada por ti. O mais bonito é que foste capaz de me cativar toda a vida. E eu... "És tão doce", como me dizias... Sim, essa minha doçura talvez nos tenha salvado algumas vezes. Como... Como me deixavas sem respirar. E eu sei que te fazia o mesmo. E por isso foi sempre tudo tão bom, comprometido e sincero, porque nada do que tínhamos vivido até nos conhecermos tinha sido igual.

E os nossos últimos dias? Esses foram passados com a família que cresceu com os netos. E os amigos... As conversas que tantas vezes tivemos na nossa sala.... Com os nossos amigos que nos mostravam que era preciso mudar tanta coisa. Ou, por outro lado, eram momento de alegria, de amor e de encontro. Nesta nossa vida fizemo-lo sempre ao longo dos anos, não o poderíamos deixar de fazer quando fomos velhinhos.

Já com uma idade avançada, sorríamos e partilhávamos sempre cada momento em conjunto, não só com todos os que amávamos, mas também no nosso quarto, de portas fechadas, a conversar no local onde tanta vezes partilhámos o transcendente. Agora, brincávamos com as nossas rugas e tentávamos não nos chatearmos por eu ter sempre os pés frios quando me deitava ao teu lado na cama. Não me esqueço que quando encostava a ponta fria do meu nariz ao teu braço tu tinhas sempre vontade de te desviar. Nunca o fizeste.

Eu parti primeiro a ver a tristeza no teu olhar enquanto me afagavas o cabelo e me beijavas a testa. Sabes o que eu via? A tua jovem face a sorrir quando chamaste por mim, naquela praça, num dia de sol. E aquela mesma sensação de não conseguir acreditar que chamavas por mim naquela praça era o mesmo sentimento ali, no leito, a olhar para ti. Como foi possível que me tivesses chamado? A verdade é que o fizeste e, desde aí, não mais foi necessário chamares-me porque eu estava do teu lado. Até àquele momento. 

Partiste pouco tempo depois, bem me dizias sempre que isso ia acontecer. 

Como é bom pensar que numa outra vida fomos capazes de viver e de sentir tudo o que não conhecemos.

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