Carta ao Final do Dia
Hoje queria dizer-te que fiz uma coisa boa. Ajudei alguém e sei que ele está melhor agora. Está feliz. É boa esta sensação com que se fica depois de ajudarmos alguém, não é? Gostava muito de poder partilhá-la contigo e contar-te esta história. Tenho a certeza de que irias sorrir e irias dizer qualquer coisa do género: "só tu". Eu ficaria ainda mais contante por poder partilhar contigo o resultado do meu gesto e sentiria que não podia estar mais centrada no meu presente.
Sabes, hoje queria dizer-te que também me irritei. Irritei-me com a mentira, com o encobrimento da verdade, com a falsidade. Apesar da minha irritação, fui capaz de dizer a verdade, de a mostrar, de a mandar cá para fora. Fui capaz de a escarrapachar, sem medos. Apenas e só porque é aquilo que devo fazer, independentemente das suas consequências. Sei que ficarias preocupado e, talvez, a tua primeira reação fosse tentar fazer com que eu parasse de querer dizer a verdade. "Não vale a pena colocares-te em perigo", dir-me-ias. Eu sei que no primeiro momento em que ouvisse estas palavras da tua boca, eu ficaria irritada. Dir-te-ia algo e ficaria ainda mais ruborizada. Mas, depois, passado algum tempo, eu iria compreender que apenas estavas preocupado comigo. Porque, para ti, a minha segurança é o teu bem maior. Essa vontade de me ver bem é maior do que a necessidade de eu dizer a verdade. E, finalmente, eu saberia que não poderia estar noutro sítio que não fosse aí, ao pé de ti.
Hoje também queria dizer-te que estou cansada. Estou tão cansada, sabes? Cansada deste vazio e desta incerteza. Desta escuridão imensa que me cobre todos os dias. Estou tão casada. Às vezes quero mesmo desistir. Fechar os olhos e adormecer para sempre na esperança de ficar no meu sonho... Num sonho onde já não há dor, num sonho onde já não há sofrimento, num sonho onde já não há desilusão. Eu sei que me abririas os teus braços e eu poderia, enfim, descansar um pouco e, por um breve momento, sentir que não tenho esta minha vida. Aí tudo voltaria a ganhar sentido. É que... sabes, estou muito cansada de que as coisas tenham perdido o sentido.
É que... Eu hoje também gostaria de te dizer que aprendi que há coisas más que nos acontecem só porque sim. Não há nenhuma razão aparente, nem nenhuma lição a retirar dessas coisas menos boas. É como se certas e determinadas coisas nos acontecessem só para nos magoar. Como se fosse necessário a almas como a minha serem ainda mais magoadas... Já não bastava tudo o resto. Ufa.... Que cansaço que me traz esta dor no meu peito. Esta dor do inusitado, retirando-me qualquer noção de que as coisas estejam ligadas por um qualquer sentido. Não. Aprendi mesmo que há coisas que só nos fazem sofrer. Nada mais. E, aqui, eu sei que não me virás apaziguar com as tuas palavras doces e o teu beijo seguro.
Acima de tudo, hoje queria dizer-te que tenho saudades tuas. Sinto a tua ausência como se fosse a única forma de te manter perto. É estranho, não é? Mas, a certeza desta tua ausência, o vazio que trago sempre comigo, é também a marca de que alguma vez estiveste em mim. E isso é tremendo. Essa vontade do meu pensamento se livrar de ti é muito menor à vontade em te querer voltar a sentir. Independentemente, de tudo o resto. Do que dissémos um ao outro, do que demonstrámos um ao outro, da frieza com que nos tratámos. Como se o simples momento em que te pudesse ter fosse o meu renascer. Sim, tenho saudades tuas.
É por isso que gostaria de te dizer como tenho orgulho em ti. Tenho mesmo, sabes? Já não estamos no mesmo barco desta vida, mas quando olho para a tua vida, a tua embarcação em alto mar, fico sempre orgulhosa. Tu conseguiste velejar para longe, fazer o teu caminho de aventura e de descoberta, encontrares-te e desencontrares-te com o amor, foste navegar leve e seguro rumo ao sonho. Eu fiquei em terra, pregrada ao chão, sentada num banco a ver-te ir. Não fui capaz de ir nesse barco, tu não o quiseste... Bem, na realidade não fui capaz de ir nesse teu barco ou em qualquer outro. Fiquei sempre pregada à terra a ver esses barcos a ir, a ir, a ir... Até desaparecerem no horizonte. Tal como vi o teu. Sempre com a certeza de que estavas bem. Sim, eu sei que me desprezas. Mas, sinto mesmo que estás bem e que vais ficar sempre bem nessa tua força e agrado que tens à vida. Fico triste por aqui ficar presa, mas sinto uma alegria genuína por não teres ficado preso comigo.
Afinal de contas, só te queria dizer que gostava tanto que me tivesses deixado ir contigo nessa aventura. Que tivesses tido essa vontade de me agarrar e de não me deixar ir. Como eu queria que me tivesses querido. Nem que fosse com um pouco de apreço...
Queria dizer-te tanta coisa que eu sei que nunca te direi. Continuarei aqui, pregada ao chão, à espera de que todos os barcos passem rumo ao seu destino predilecto: a certeza de que o seu destino é onde têm de estar. Esse sentimento de pertença, que uma vez tive em teus braços, é deveras extraordinário... Equacionar que há, de facto, pessoas que conseguem chegar a esse destino é mágico.
Sabes...
Talvez hoje eu não quisesse falar muito contigo. Todas estas coisas poderiam ficar para um outro dia. Talvez hoje eu não quisesse falar contigo. Talvez hoje eu apenas te quisesse ver à minha frente e tocar-te na face, sentido cada uma das linhas do teu rosto nos meus dedos. Aí eu saberia que era real, não eras nenhuma fantasia dos meus sonhos. Eras real. Estavas comigo, à minhe frente! E, talvez aí... Talvez aí eu pudesse, finalmente, descansar.
Quadro: Henri Matisse, Open Window, 1905
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