A Trautear num Café

O barulho é ensurdecedor. Mas naquele café com tão pouca gente as vozes desesperadas que vêm da televisão preenchem o espaço. Talvez seja, precisamente, pelas poucas pessoas que ali estão, que tudo pareça ainda mais caótico.

A cacofonia que daí advém não me deixa retirar os olhos daquilo que me mostram: mortes, prisões, perseguições, fome, desespero. Pelos minutos que ali levo, a tentar distrair-me da minha própria dor, estou a beber de tudo aquilo que se passa fora de mim, da minha realidade, do meu cubículo.

Sem aviso prévio, alguém muda de canal para algo completamente diferente, e, aí o barulho é outro. É também uma cacofonia, mas é outro barulho: agora são três pessoas a gritar umas com as outras sobre um assunto qualquer supérfluo... Ah... Isto é que devem ser os tais que opinam sobre tudo e sobre nada sem saberem do que é que estão a falar.

Suspiro.

As minhas mãos circundam a chávena de chá. Se aqui não consigo descansar a cabeça, ao menos que consiga aquecer as mãos. Está frio lá fora e, agora, tudo me parece impossível. O mundo parece-me impossível de compreender, parece-me impossível conseguir sobreviver no meio da soberba de outros que secam tudo à sua volta. 

Levo a chávena à boca e, pela primeira vez que aqui cheguei, sinto algo bom: o líquido quente aquece-me o corpo e saboreio aquele chá de camomila como se fosse o último.

"Pum... Pum... Pum..."
Olho de soslaio para ir ao encontro daquele som. É quase imperceptível de tão baixo que é, mas ele existe e cedo percebo de quem é. O homem sentado ao meu lado naquele balcão bate com os dedos na mesa, como se estivesse a tocar uma canção. E sim, na realidade é uma canção... O movimento dos dedos é certeiro, único e ritmado. Como se aqueles dedos soubessem exactamente o que querem interpretar.

Não consigo compreender como é que fui capaz de ouvir aqueles dedos, uma vez que tudo continua a berrar... Talvez tenha sido por ser tão simples e único que o meu cérebro tenha conseguido descortinar aquele som.

Ao de leve e sem conseguir parar, esboço um sorriso. Mas não me atrevo a fixar o meu olhar no homem. Não. Eu não o conheço de lado algum e numa sociedade onde não conhecemos ninguém e onde vivemos no anonimato é melhor continuar assim. Além disso, sentir o ritmo daqueles dedos é tão bom, que não quero que o seu dono tenha vergonha e pare de o fazer se se der conta que eu estou a ouvi-lo.

Levo, de novo, a chávena à boca. Eu conheço aquela canção... Não sei bem qual é, mas eu conheço-a. Tenho vontade de me rir: que mundo é este onde o mais bonito som não é ouvido por toda a gente? Apenas por mim, naquele banco de café.

"Ooh, Ooah, Hum, Hum..."
Pouso a minha chávena. Este homem está a trautear... Ele está a cantarolar... Olho num ápice e, agora sim, consigo ver aquele sujeito. Curvado sobre o seu caderno, ele escreve... Acompanhado de uma chávena que é diferente da minha, mais pequena... Uma chávena de café.

Quem é este indivíduo que tem a coragem de trautear num café? Fecho os olhos, a ouvi-lo, ao de leve, e tenho tanta vontade de cantar com ele.

Quando volto a abrir os olhos, os dele encontram os meus.

"Ah" digo surpreendida, mas ele não se perturba e continua a trautear aquela canção. Ele maneia a cabeça e sorri, voltando a concentrar-se no caderno.

O que será que ele tanto escreve?
Não sei, não importa. O que importa é a pureza daquele som que agora me preenche o corpo. Quero levantar-me e começar a dançar ao som da sua voz!

Agora sim, sorrio. Sorrio e sei que ele sabe que estou a sorrir. Consigo ver perfeitamente o seu olhar furtivo na minha direção. Volto a fechar os meus olhos e agora só consigo ver o azul límpido daquele homem que agora olha para mim.

Sentada naquele banco, levemente, abano o meu corpo ao som da sua voz e bebo o meu chá. Tudo agora me parece maravilhoso. Estou noutro mundo, por aqueles breves instantes estou noutro mundo, onde apenas existem aquele homem, aquela canção e a vontade interminável do meu corpo interpretar aquela melodia.

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