No Fim


Sinto que as forças me fogem. Sinto que elas me deixam aqui a morrer sozinha. Até as minhas forças me deixam sozinha, caída no soalho da casa. Olho para o tecto branco que, agora, será a minha última visão antes que o meu coração deixe de bater. Melhor, antes que deixe de ter forças para respirar. Na verdade, há muito que o meu coração já não bate.

Para onde vão elas?

Para onde vão as minhas forças? Vão entregar-se, assim, a alguém? Como se esse alguém fosse mais valioso do que eu? Eu sei bem que nada valho. Sim. Eu não valho nada. Nada. Nem o ar que respiro ou a terra que piso. Eu não valho nada. O tempo para eu valer algo já passou. E esse sacana do tempo não volta atrás. Não. Ele passa e não volta. Nada há quem me demonstre que eu tenho valor. 

Terá sido por isso que elas se foram? Que as minhas forças me deixaram assim, devagar. Não foi de rompante. Não. Estas coisas nunca acontecem do dia para a noite. Elas vão acontecendo. Devagarinho, devagarinho, até que todas elas saem de dentro de nós. Bem tentei impedi-las, Deus sabe como o tentei, mas elas não me quiseram mais.

É assim.
Elas não me quiseram mais. Elas não quiseram ficar no meu corpo, não quiseram continuar entranhadas na minha mente. E agora? E agora que faço? Fico aqui em silêncio à espera que me levem daqui? Que me movam daqui? Será o resto da minha vida passado assim? Imóvel, à espera do dia em que vou fechar os olhos definitivamente?

Experimento fechar os olhos agora e não vejo nenhuma luz. Só escuridão. Está tudo escuro, porra! O que vou fazer eu com o negro? Ficar ainda mais pregada ao chão? Não. Não quero estar de olhos fechados. Isso faz-me sentir… faz-me sentir nada. E isso ainda é pior. É ainda pior nada sentir.

Ergo as minhas mãos. Doem-me. As feridas não saram. Tenho as mão feridas da minha luta. Como elas sofreram, sempre a fazer aquilo que a minha mente comandava, como se não houvesse amanhã. Tudo tinha de ser rápido e preciso. Tudo tinha de ser feito com prazos e horas. Tudo tinha de cumprir um plano. As minhas mãos estiveram sempre prontas para agir em todo o caso, sem olhar a meios ou a vontades. Elas tinham de se mexer desenfreadamente… Agora estão assim: em carne viva, à espera de que um ou mais bichos venham comê-las. Será que até eles quererão provar esta carne fria?
O que estou eu a dizer? Os bichos não me vão dizer que não. Afinal todos vamos pertencer-lhes, não é assim? Aos bichos vamos pertencer… na verdade, pertencemos aos bichos toda a nossa vida.

Sinto uma lágrima que me cai na face. Sorrio. Ainda tenho água dentro de mim, dos meus olhos.
Talvez seja aquilo que resta da minha humanidade. As lágrimas que chegam aos meus lábios gretados. O seu sal faz com que eu sinta ainda mais dor nos meus lábios massacrados. Estes meus lábios que nalgum ponto do meu passado apenas quiseram amar. Ai! Como estes lábios quiseram amar, mas não lhes foi permitido. A eles isso não lhes foi permitido, ficando secos e vazios, cumprindo as suas elementares funções do ser humano: comer e falar. Como são inúteis os lábios quando não podem amar. De que nos serve comer, falar, viver, se não pudermos amar?

Uma outra lágrima cai. 
Recordo agora como cheguei a sorrir. Em algum momento da minha vida eu me ri. Como me ri genuinamente. Era um sentimento tão bom, como se fosse um desabafo por todo o inferno que estava à minha volta. Como se naqueles segundos eu fosse uma outra pessoa, numa outra vida sem dureza ou frustrações. Que saudades tenho de sorri. Quem sabe, se tivesse sorrido mais, talvez as minhas forças não me tivessem deixado...

O que faço agora sem vós? Como é que saio daqui?

Oiço barulho. Estará aqui alguém? Poderia tentar falar, mas não consigo. Nem a boca consigo abrir. O mundo prendeu-me dentro de mim mesma.

Não.

Oh! Não.

São elas.
São eles. São todos eles que estão a chegar à minha volta. Estou farta. Estou farta e cansada destes que me apontam o dedo. Mas que merda fiz eu? Eu só me queria defender de todos eles. A culpa de eu estar nesta lama de desprezo é deles. Foi cada um destes filhos da puta que me pôs aqui. Que me amarrou as pernas e os braços. Que me pregou a este chão de madeira. Que me deixou aqui a morrer como um cão vadio. E, agora sem forças, como é que eu os posso combater? Como é que eu posso fazer com que desapareçam. se já não tenho nada?

Já não tenho nada que me faça sair desta prisão.
Vou só ficar aqui. Vou ficar aqui enquanto eles acabam com a minha cabeça. Enquanto eles acabam comigo. Oxalá, todos os que se cruzaram comigo possam continuar a sua vida… E que amem.

UH.

Respiro fundo.

Uma dor profunda no meu peito faz com que já não oiça as vozes daqueles parasitas.
Penso nos outros. Naqueles que andam por aí contentes, com as suas preocupações mundanas. Que amem e sejam amados. Não há nada mais belo do que isso e, talvez assim, o mundo pudesse ser melhor. Talvez assim, estes homens pérfidos que me atormentam, não existissem.

Ah.

Ah.

Está perto.

Custa-me a respirar.

Fecho os olhos.
E vejo-te. Vejo-te como sempre te vi quando precisei. Bastava fechar os olhos para te ver e para ouvir a tua voz. Sim. Apesar de tudo, consigo ver-te. Consigo ouvir-te. Essa tua voz única e quente que sempre me acompanhou, mesmo sem tu saberes. Como te amo. Como te amo e desejo que-

Já anda oiço. Já nada sinto. Já nada penso.

Agora sim. Vejo luz.
--

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Dúvida da Certeza

Posso dizer-te que Gosto de Ti?

Conhecer e Dar-se a Conhecer