O Lúcido Tresloucado

- Às vezes gostava de ter a habilidade de falar sem palavras, sabes? De dizer tudo aquilo que sinto, assim, livremente e sem ter medo de nada e de ninguém.
- Medo? Medo de quê? Medo de quem?
Com ar de quem tenta dizer algo com sentido, ele confessa.
- Medo deles. Deles e de toda a gente que me rodeia. Às vezes sinto-me a sufocar. Sinto que não cresci o suficiente para lidar com a vida. Estou cansado de lidar com a vida. Cansado de lutar por viver... Sabes o que isso é?
Franzo o sobrolho. Não faço ideia do que seja isso.
- Não entendo.
Ela suspira.
- Não sou homem suficiente para ser ultrapassado e não me importar com isso.
- Se és ultrapassado tens de fazer alguma coisa para não o seres.
- Eu faço de tudo para não o ser. Mas os outros não se importam. Esses tais de que tenho medo. Eles não se importam. Acham que eu sou um lixo. Nada do que faço interessa. Nada do que faço é bom o suficiente para eles. Sou sempre posto de lado, como um caroço de uma maçã que já não presta e é atirado para o lixo.
Começo a assustar-me.
- Se assim é, livra-te deles. Assim, não vale a pena.
Ele fica calado durante um tempo quando, num tom quase inaudível diz:
- Não tenho coragem. Não tenho coragem para deixar esta merda. Esta merda que me consome e que me tornou numa merda igual. Que me tornou nesta porcaria que nunca quis ser.

Ele pega num cigarro e começa a fumá-lo compulsivamente.
- Pára.
Peço-lhe. Parece que ele vai sufocar-se com a porra do cigarro.
- Pára! - elevo o meu tom de voz e agarro-lhe no pulso. Finalmente, ele retira o cigarro da boca e tenta respirar mais devagar.
- Porquê parar? Eu só estou à espera de que o meu coração deixe de bater. Eu já morri. Eu já morri e nada me vai fazer ressuscitar - Ele levanta-se de rompante - Sabes porquê? Porque todos eles me cravaram uma bala no peito - Ele abre a camisa - cada uma delas está aqui - Ele bate no peito consecutivamente - Cada uma delas está aqui marcada e cada uma delas eu sinto todos os dias. Sinto a angústia desta dor que me diz que estou vivo.

Ao nosso redor as pessoas olham para ele, chocadas.
- Sim... - Ele acena com a cabeça e olha à sua volta - sim, seus merdas. Eu sou um morto-vivo por causa de todos vocês. Cada um de vocês com a suas mentiras e os seus queixumes. Todos vocês com essa estupidez que me assola e burrice que me queima. Todos vocês seus energúmenos de merda. Todos vocês me mataram cada vez que me olharam de lado - Levanto-me assustada. Quero ajudá-lo, mas não sei como. Os empregados do café pedem para ele se calar, mas ele nada ouve - todos vocês me cuspiram na cara cada vez que me julgaram, que me prejudicaram, que me deitaram para o lixo, tal e qual como fazem com a caneta que já não escreve - o burburinho na sala aumenta, mas eu não me foco nisso. Naquele episódio catártico eu apenas consigo estar atenta ao que ele diz - todos vocês me mataram quando me julgaram menos do que aquilo que sou, todos me mataram quando me deram um pontapé no cú e não viram tudo o que de bom fazia - os empregados pegam nele e arrastam-no para a porta. Estranhamente, ele não se tenta libertar. Ele apenas se deixa ir, não sem antes gritar - TODOS VOCÊS ME MATARAM! TODOS VOCÊS ME ROUBARAM AQUILO QUE EU PODIA TER SIDO E NÃO SOU.

Os empregados atiram-no lá para fora e voltam. As portas envidraçadas deixam ver a sua figura esparramada na calçada. Afundo-me na cadeira e continuo a olhar para aquele homem... aquele homem que agora está desfeito.

Os meus olhos enchem-se de lágrimas. Estou a caminho de me tornar naquele homem e não sei como parar.

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