Deixar de Remar Contra a Maré

A noite tinha chegado muito mais rápido do que estava à espera. O telefone tocou e interrompeu o silêncio profundo que inundava a sua casa. Era Afonso. O seu amigo Afonso que, mais uma vez, lhe perguntava se devia pedir Amélia em namoro. Marta já lhe tinha dito mais de mil vezes para ele avançar. Afonso era seu amigo de infância e voltou a descansá-lo, mostrando-lhe que ele estava a tomar a opção certa. Em breve ele e Amélia estariam a caminho da Argentina para trabalhar num projecto para as Nações Unidas. Marta pensava que os amigos tinham uma grande sorte, por isso, o pedido deveria ser feito o mais rápido possível para que emigrassem já juntos. Ela sorria ao mesmo tempo que desligava o telefone. Um sorriso que muitas vezes fazia quando via o sucesso e a felicidade daqueles que gostava. Uma expressão sincera, de compaixão, de amizade e, também, de alguma nostalgia. Brevemente, também eles iriam embora. Marta sabia que para eles era uma oportunidade única, afinal estes eram mais dois dos seus grandes amigos que seguiam em frente e tomavam o seu caminho nas mãos. 

Marta foi até ao seu quarto arrumar algumas roupas que tinha dobrado no dia anterior. Apesar de naquele dia estar sozinha, ela vivia com os pais, mas, naquela semana, eles não estavam. Desde cedo que ela tinha percebido que ia ficar com eles. Ela sabia que essa seria uma parte do seu futuro. Quando era mais nova e as coisas não corriam como ela planeava e era incapaz de realizar os seus sonhos, Marta tentava encontrar uma razão que explicasse o porquê daquilo acontecer. Até na sua forma de se comportar, Marta era diferente das outras raparigas. Sempre o tinha sido, sem perceber bem porquê. No entanto, a inocência fazia com que Marta não ficasse demasiado tempo presa a uma pergunta e seguia sempre em frente, por vezes inconsciente dos seus actos e das repercussões que isso poderia ter no  futuro.

No entanto, há sempre uma altura em que a realidade nos é posta de frente, de forma clara e límpida à qual é impossível escapar. Isso aconteceu a Marta pouco tempo depois de começar a trabalhar. Como sempre tinha acontecido, ela não tinha conseguido alcançar nada do que tinha sonhado e ambicionado. Quando se é mais velho a inocência já não faz parte do ser humano. E ao dar-se conta de que essa inocência já não existe, Marta percebeu porque é que estava onde estava. Porque simplesmente tinha de ser assim. Foi fácil perceber isso, sendo apenas necessário olhar para o seu passado, desde a sua infância até à idade adulta. Tudo apontava para que assim fosse. O seu estilo simples, honesto e sem jeito nenhum para rodeios. A sua timidez, os seus segredos e os seus fardos que sempre ficaram consigo. O chorar no silêncio e às escondidas. Todas as vezes que se riu para esconder a sua tristeza profunda. O seu desleixo, a sua falta de coragem crónica, a sua sensatez, mas também a sua teimosia. Os seus medos e angústias e a sua vontade e prontidão em ajudar os outros. A sua falta de jeito para comunicar e a sua vergonha. Era como se tudo se tivesse alinhado para que Marta estivesse onde estava: num trabalho para o qual não tinha nenhum dom especial, sem alguém que estivesse do seu lado e com uma grande tristeza no coração que sabia disfarçar todos os dias.

Enquanto Marta reflectia sobre tudo o que se tinha passado, ela tinha já arrumado toda a roupa. Olhou para o relógio e percebeu que era altura de fazer o jantar. Dirigiu-se à cozinha, acendeu a luz e pegou numa cebola. No fundo, ela sabia que a tristeza que muitas vezes era a sua maior companhia só ia desaparecer quando ela aceitasse totalmente o que tinha. Quando deixasse de estar revoltada com ela própria por nunca conseguir aquilo que tinha planeado ao longo da vida. Marta sabia que a sua postura em relação a essa sua vida estava a melhorar. O processo de aceitação era longo, mas este estava a tomar o seu caminho.

Descascou a cebola, picou-a para um tacho e pôs algum azeite. Ia fazer arroz. Ela gostava muito de arroz. Era nestas pequenas coisas, nas quais podia ter o controlo, que Marta gostava
de investir o seu tempo. A vontade dela era comer arroz e para isso só o tinha de fazer. Ela controlava todo aquele processo e aquele prazer ela ia conseguir tê-lo. Sem esperar, o seu telefone voltou a tocar. Era Júlia, uma das suas melhores amigas. Ela acabava de lhe dizer que Tiago, o seu marido, já sabia que ela estava grávida e que estavam muito felizes. Uma óptima notícia! Falou com ela algum tempo e ficou bem disposta. Marta tinha a certeza de que Tiago ia adorar ser pai. Desligou a chamada e voltou ao seu jantar.

Estava quase tudo pronto quando Afonso lhe voltou a ligar. Estava feito. Ele era agora o homem mais feliz do mundo. A boa disposição de Marta ficou ainda maior. Finalmente ele tinha conseguido!

Marta pegou no seu prato e encheu-o de arroz, que tinha acabado de fazer, e um panado. Sentou-se no sofá da sala e jantou descansada. No final, recostou-se e ficou a olhar para a televisão que continuava a dar notícias sobre a crise na Europa. Fechou os olhos e novamente sonhou com ele. Com alguém que nunca tinha conhecido, mas que era o seu maior sonho. Um daqueles que nunca poderia ter nem nunca seria real. Marta sabia disso, mas, pelo menos, na sua imaginação ela podia viver tudo. Isso tinha de bastar.

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