Carta a Filomena

Lisboa, 14 de Junho de 1985

Querida Filomena,

Como estás?
Que tal a família?

Estou com muitas saudades de ti e como não podia deixar de ser tinha de te contar tudo o que se anda a passar, por isso decidi escrever-te esta carta.

Estes primeiros meses têm sido uma loucura, mas posso afirmar com toda a certeza de que esta está a ser a melhor fase da minha vida. 

Filomena, gostava que aqui estivesses para veres tudo aquilo que tenho presenciado!
A vida aqui é uma confusão! Aquilo que nos ensinam no curso de letras pouco tem que ver com esta vida nas redacções. Tu não podes imaginar! Telefones a tocar por tudo quanto é lado, ouvidos agarrados aos gravadores, que às vezes são um problema por causa das cassetes, tudo a correr de um lado para o outro, nuvens de tabaco, gritarias...Uma coisa impressionante! As tipografias a trabalhar a uma velocidade impressionante, novos jornais a aparecerem... Isto não podia ser melhor!

E estar numa redacção no Bairro Alto é espectacular!
Em noites de trabalho entra-se no Jornal, depois de se sair de um bar, e quando se sai de manhã do trabalho, entra-se na tasca... Benditas sandes e bendito café! 
Marcar entrevistas, estar com as bandas nos ensaios, mas mais do que isso é quase entrar na vida deles... Tenho feito com cada trabalho... E conhecido cada pessoa. Isso tem sido enriquecedor. Vejo as coisas de forma completamente diferente e às vezes até eu tenho vontade de subir para cima de um palco, pegar numa guitarra e agarrar no microfone e cantar sabe-se lá o quê...

Estou feliz! Nunca pensei que trabalhar neste Jornal seria assim. Às vezes há coisas difíceis... Uma delas é, sem dúvida, o fecho de edição. Mas é uma adrenalina impressionante. Escrever com a maior atenção, escolher as melhores palavras, rever tudo, e ter um título... Ai, os títulos! Bem sabes... Esses eram o cabo dos trabalhos, ou melhor, são. Porque encontrar um bom título é tão complicado... 
E depois ter o editor a berrar para a redacção inteira "falta meio segundo para fechar a edição! Depois disso se não há artigo, o espaço vai em branco!!!". 
A pressão, por vezes, é grande, mas é uma sensação espectacular, saber que as pessoas vão ler cada linha que escrevi! 

E a maior novidade de todas: mais um semanário das artes quer o meu trabalho! Penso que vou conseguir manter-me nos dois jornais... E nem acredito que a fazer o que mais gosto! Nem sabes como anda a música por aqui: tudo em pólvora. Sons muito bons andam a aparecer e músicas com crítica social! Ainda bem... Está perto de fazer um ano em que o António Variações morreu... O Jornal está a preparar um grande artigo e adivinha quem ficou com a história... EU! Por isso, não te esqueças de comprar o Jornal desta semana!

Ias adorar estar agora em Lisboa. Os sítios estão mais vivos do que nunca, mas muitas vezes parece que cada um tem o seu público, percebe? Cada lugar tem um grupo que se distingue dos outros, mas a verdade é que todos se dão bem. Pelo menos aqueles que conheço. Só há uma coisa que me deixa preocupada: o vício. Conheço pessoas do melhor, mas tão metidas nisso e a verdade é que estão completamente agarrados. Espero que aquele nosso amigo abra a pestana rapidamente.

Fico à espera da tua resposta. Se demorar algum tempo a responder não te apoquentes. Às vezes o trabalho é muito e a farra também... 

Vem passar uns dias a Lisboa! Ela também tem saudades de ti e sei que deves estar a ressacar de ver o Tejo. Apesar de toda esta correria em que a minha vida se tornou ele continua sereno. Sereno como sempre, tal como quando foste para Braga!

Como está o Carlos? Sei que os militares têm sido vistos de forma menos boa e conheces bem a minha opinião acerca disso, mas continuo a gostar muito do Carlos.

Um grande beijinho desta tua amiga que não te esquece,

Helena Durães

P.S.: Assim que o meu primeiro artigo seja publicado no semanário para o qual vou começar a trabalhar, eu aviso!

Saudades.

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NOTA: Esta carta é puramente ficcional, escrita com base no meu imaginário acerca dos anos 80 prósperos em imprensa e boa música. Tempo esse no qual eu adorava ter vivido.



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