Vulnerável VII

- Não sei se deva ficar contente por estares a trabalhar - ele beija-me o pescoço - Antes era mais divertido... Vinhas mais vezes.

Ele aperta-me no seu abraço e eu sinto a sua mão na minha barriga.

- Venho sempre que posso... praticamente já me mudei para aqui. E, digamos, que não estamos em tempos-

- Já imaginaste como seria um filho nosso?

A pergunta dele ecoa pelo quarto. Por vezes, não sei como é capaz de me dizer estas coisas, com uma facilidade que me desarma.

- Sabes que não penso nisso... - acabo por lhe dizer. Sinto o seu rosto junto ao meu e o seu cheiro deixa-me inebriada.

- Seria forte... Uma força da natureza.

- Irascível como tu.

Ele sorri.

- Mas doce como a mãe.

Beijo-lhe a face - Teria os teus olhos?

- Não... teria os teus grandes e bonitos olhos.

- Não... não me digas que iria herdar de ti o mau feitio.

Ele solta uma gargalhada.

- Mas...ouvir-te-ia. 

Nunca pensei em ter filhos. E, apesar de o amar, nunca pensei nessa possibilidade. Permanecemos juntos como se tudo nos mantivesse ligados, mas, ainda assim, não sabemos ao que estamos nem o que queremos no futuro. Eu bem sei que um dos seus sonhos é ter um filho. Quem sabe mais... Tem uma irmã, normalmente quem tem irmãos quer sempre ter mais do que um filho. Ser pai é algo que lhe está agarrado ao coração. E sinto que, mais cedo ou mais tarde, seja com quem for, isso irá acontecer. É um homem que, estranhamente, e apesar da sua aversão à ordem, manterá uma vida ordenada. 

- Tal como eu te ouço.

Viro-me no seu abraço e admiro-o. 

- Não me seduzas - ele admira-se com as minhas palavras - em certas ocasiões, tu não ouves ninguém - coloco o meu dedo indicador na sua testa - nem sequer a tua razão.

- Eu ouço-te - levo a minha mão ao seu cabelo - Mais do que imaginas.

Beijo-o profundamente, sentindo a sua mão no meu ventre.

- Quando tiveres um filho - digo-lhe junto aos seus lábios - Sabes que esse é o meu limite.

Ele acena.

- Seria ou não uma força da natureza?

Sorrio, aceno e beijo-o demoradamente.

Batem à porta.

Fixo a minha atenção em si e a sua expressão muda. Num ápice, levanta-se. Veste as calças do pijama e com o seu olhar pede-me que ali fique. Vejo as horas, são onze da noite. Não é bom sinal.

Sento-me na cama.

- Temos um problema, o major pede para falar contigo...presencialmente.

- O que se passa? Tem que ver com a unidade?

- Tem que ver com mais do que isso. Vem comigo à casa do major.

- Espera por mim lá em baixo.

- Está - silêncio - ok.

Ouço a porta a fechar-se.

Em menos de nada, ele encontra-se no quarto e procura pelo camuflado.

- Não saias daqui. 

- O que se passa?

- Não saias daqui. Espera por mim aqui.

- E se não vieres?

- Telefono-te. Algo vai acontecer.

Sinto uma preocupação que me invade.

- Que queres dizer com isso?

- Já te tinha dito... Há muito que pressentimos que alguma coisa vai acontecer, devem existir informações novas.

Levanto-me e visto uma das suas camisolas. Ele já está praticamente pronto. Dou-lhe a sua gola e abotoo-lhe o casaco.

- Usa a cabeça e... mantém-te vivo.

--

Passaram dois dias. Depois daquela noite, não o voltei a ver, tampouco estive em sua casa. Deixou-me alerta o facto de ficar na unidade. Como segundo comandante não o tinha de fazer, mas se assim o decidiu é porque algo está mesmo iminente. Estou na tipografia da editora a supervisionar uma nova edição de "Peças em um Acto" de Luís Sttau Monteiro.

- Tem uma chamada em linha.

Franzo o sobrolho. Talvez seja alguma questão da edição. Vou até ao telefone de serviço e coloco-o ao ouvido.

- Como está a edição do Sttau Monteiro?

A sua voz. Suspiro.

- Como sabes que é o Sttau?

- Ouve... Vem ter comigo ao Galeto - É a sua voz, nítida e sentida, mas traz alguma coisa de incerto - Daqui a pouco, quando saíres. Espera lá por mim.

- Diz-me apenas se estás bem.

- Estou a começar a subir as paredes.

Estar fechado, durante tanto tempo, não lhe é fácil, ainda que a situação o obrigue. No entanto, estar fora da unidade nestas horas, também não o deixa confortável.

- Sim.

- Sim? Como?

Sorrio. Tenho vontade de lhe pedir para ter calma, mas sei que isso lhe fará pior.

- Vou estar no Galeto. Afinal, lá não podes subir paredes.

--

Surpreendentemente, àquela hora da tarde, está pouca gente no Galeto. Entro facilmente e é da mesma forma que o descortino sentado ao balcão. Ao seu lado está uma cadeira vazia. Ali está ele com a mão num copo de cerveja, fixado naquele líquido amarelo. Aproximo-me e reparo como quase estrafega o chapéu com a força dos seus dedos.

- Admiro-me de não ter de esperar por ti.

Não me olha, mas vejo o seu bonito sorriso.

- Parece-me que te devo deixar muito tempo à espera...

Sento-me, pouso a minha face na minha mão enquanto o admiro.

- Talvez um pouco.

Finalmente, o seu olhar encontra o meu. O seu olhar não está ali, comigo. Há algo que o incomoda. O empregado aparece e pergunta o que vou tomar, não me dando tempo de lhe perguntar o que queria. Peço uma cerveja e retorno a minha atenção para ele que olha para a saída do estabelecimento. 

- Esperas alguém?

Ele pouca o chapéu no balcão e começa a roer a pele junto à unha do seu polegar. Algo se vai passar.

- Não. É um péssimo defeito que eu tenho... Olho sempre para as saídas dos sítios, sabes como é.

A cerveja chega e eu agradeço. Levo-a à boca.

- Vamos ser atacados.

Antes de dar o primeiro gole na cerveja, pouso o copo no balcão. Não sei o que lhe possa dizer e detenho os meus olhos nos seus que piscam mais do que é normal.

Algo está para acontecer e fora do seu controlo.

- Estão... Estão.. Prepararam-se de alguma forma?

Ele acena.

- É por isso que fico na unidade.

- Mas quem? Quem? O que vão fazer?

Ele desprende um sorriso nervoso.

- Não perdeste o hábito de jornalista.

- Não me deixes no vazio com o que me acabas de dizer.

Ele olha em redor, inclina-se e junto ao meu ouvido diz-me.

- Os reaccionários.

Fora do que alguma vez fez em público deixa-me um beijo demorado na face. Antes de que se possa ir embora, coloco a minha mão no seu braço. De uma forma denunciada, apertando-o, não deixando espaço para subtilezas.

- O que vão fazer? - questiono-lhe, prendendo toda a minha atenção no seu rosto. Os seus olhos deixaram de piscar à mesma velocidade e parece ganharem alguma vida, alguma presença. 

- Obrigada.

Ele pega no chapéu e sai do Galeto. Fico suspensa naquele banco. Suspiro e olho para a cerveja à minha frente. Bebo-a com a mesma sofreguidão com que os pensamentos me invadem a cabeça. Se algo acontece, a população sairá para a rua. Isto não vai cair em saco roto. Talvez lhe devesse ter dito o que ouvi nos corredores. Merda.

Imagem: "Le Baiser" Auguste Rodin

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