Vulnerável II

Voltei a presenciá-los por algumas vezes... os pesadelos... não aconteceram todos os dias em que estive com ele, mas aconteceram. E, quando assim é, eles são violentos... Trazem a mesma violência do primeiro a que assisti. A reação dele é sempre igual: silêncio. Eu respeito-o. Entendo que não queira falar comigo, mas, mesmo assim, sinto uma urgência de o tentar amparar que não consigo evitar. Não sei se o vou encontrar em sua casa. Como tudo isto anda, acredito que não lhe seja fácil sair da unidade. De qualquer forma, levo comigo umas cervejas. São boas para desbloquear. A noite já caiu e a rua está sossegada. É uma zona residencial, por aqui o único café aberto tem duas pessoas ao balcão. Quando estou a chegar à porta do seu prédio, ouço uma voz familiar.

- A senhorita está perdida?

Ele, sempre com a sua graça habitual. É o que o torna tão requerido pelas mulheres. Digo-lhe sempre.

- O Capitão será que pode ajudar?

- O Capitão não sei, o Major talvez.

- Isso... Peço-lhe desculpa, mas não percebo nada de patentes militares.

- Precisa de umas aulas? - Finjo que penso e acabo por concordar. Ele sorri-me ao mesmo tempo que abre a porta do prédio. 

Em menos de nada chegamos ao seu apartamento. Como sempre, entro primeiro e espero que ele feche a porta. Coloco o que trago no aparador no corredor e, depois, olho-o. Está cansado, vejo-o pelos seus olhos. Tal como ele, a cor dos seus olhos é indecifrável, perdida entre um verde, um azul e um castanho. 

- Não esperava ver-te hoje aqui - ele esboça, finalmente, um sorriso. Como é bonito o seu sorriso, penso que foi o que primeiro me cativou.

- Foste tu que me disseste, de manhã, para vir ter contigo - coloco as mãos na cintura.

- E desde quando fazes aquilo que te peço? - Finjo surpresa.

- O senhor capitão não deve falar com uma senhora dessa maneira - dou um jeito ao cabelo, desvio o olhar e bato o pé. Ele ri-se.

- Fazes-me perder as maneiras - olho de esguelha e vejo-o a inclinar-se - peço desculpa, minha senhora - faz uma vénia - ao seu dispor.

Desfaço a minha pose e dou dois passos. Com ele inclinado desta forma as nossas alturas ficam mais próximas. Coloco a minha mão no seu ombro e, ao de leve, passeio até ao seu cabelo preto, curto, mas farto. 

- Completamente ao meu dispor? -  pergunto-lhe ao ouvido.

- Completamente, vossa senhoria - ele responde, calmamente, ao mesmo tempo que o seu braço me rodeia as pernas.

- Está a prender-me? - Ele levanta a cabeça e olha-me. Num gesto rápido, aproveito a oportunidade e beijo-lhe a face.

- Já não sei quem prende quem - diz-me no meio de um sorriso.

Depois de um banho alargado, bebemos as cervejas que eu trouxe. Não são muitas as vezes em que estamos assim, mas quando acontece há sempre uma parte de mim que se questiona como é possível que este homem seja como é. É capaz de levar tudo à frente, de se arriscar e de deixar-se levar pelos seus impulsos, mas, noutros lugares é leve, descontraído, procurando sempre o melhor que isto de viver lhe pode trazer. 

Olho para a cerveja, e oiço o que me diz. No entanto, a minha preocupação que se instalou há algumas semanas toma conta da minha cabeça. Tenho de lho dizer. Apesar de sentir que ali, naquele momento em que ele me conta as peripécias do seu dia, estou no melhor lugar do mundo, há uma urgência que se adensa na minha cabeça. As suas cicatrizes... Dei-me conta delas da primeira vez que vi os seus braços nus, o seu torso. Sempre quis perguntar-lhe sobre elas, mas no meio de nos sentirmos, acabei por nunca o fazer. Estupidamente. Talvez aí resida a explicação dos seus sonhos.

- Pergunta-me o que queres... - olho para ele. Ele ri-se e não me encara - vá, diz-me - a sua perna esticada em cima de outra cadeira, o seu corpo refastelado junto à parede e o braço em cima da mesa, os dedos brincam com a garrafa de cerveja já quase vazia - sei que se passa algo desde que te vi lá em baixo - diz-me no meio de um sorriso.

Queria ter sido eu a iniciar esta conversa, porém, invariavelmente, ele consegue antecipar-se. Tampouco entendo como não fui capaz de dissimular que se passava algo na minha cabeça. Tem sido assim: com ele sou demasiado transparente.

O silêncio começa a tornar-se demasiado evidente. Tem de ser agora.

- Devias falar com alguém - as palavras saem de forma rápida, como se me estivessem a queimar por dentro.

Ele pára de brincar com a garrafa.

- Estou a falar contigo - diz no meio de um sorriso e, finalmente, os seus olhos caem sobre os meus. A intensidade do seu olhar sempre me prendeu... Uma intensidade pela qual me sentia, por vezes, intimidada. Hoje é uma dessas poucas vezes. 

- Podes falar sempre comigo, mas eu sei que não o queres fazer. Os pesadelos... De certo que conheces alguém que te pode ajudar. Talvez... Talvez, o teu primo conheça alguém.

Ele volta a pegar na garrafa, dá o último gole e deita-a para o lixo. 

- Não estou a dizer que tenho medo de ti ou dos teus pesadelos. Eu posso ouvir-te. Sempre te ouvi. Mas, sei que desta vez não te chego. Nas noites em que tens pesadelos és incapaz de me dizer o que quer que seja. Eu só - calo-me. Vejo-o a levantar-se e a abanar a cabeça afirmativamente. No entanto, isso não me dá qualquer tipo de confiança de que a minha mensagem esteja a chegar onde quero.

- Podes sair - as palavras saem-lhe num tom baixo, mas audível. Não sei o que dizer. Ele volta a olhar para mim. Aponta-me a saída da cozinha com a mão - Já percebi o que me tinhas a dizer.

Suspiro.

- Queres que me vá embora? - a surpresa está na minha voz. 

- Estou cansado. É melhor ires-te embora.

Não me consigo mover.

- Eu sei que aquilo que temos...bem, sei lá o que temos. Mas, esta não pode ser a tua solução.

Ele encosta-se à porta.

- Verdade, não temos nada definido, portanto não te devo nada e nem pedi a tua preocupação. Podes ir - diz, educadamente - está na hora.

Deixo as palavras assentarem. Respiro fundo a aceno. Levanto-me, pego nas minhas coisas e dirijo-me à porta da cozinha.

Encaro-o.

- A preocupação é minha, não tenho de te pedir permissão para a ter. Faz o que achares por bem. 

O seu olhar é agora vazio e frio. Novamente, sei que não me dirá mais nada. Não entenderá ele que só o quero ajudar? Sei que o que temos não é único para ele, mas eu amo-o. Nunca lho disse e é claro que não lho direi, muito menos agora. Isto é tudo apenas uma diversão. Talvez, devesse olhar para isto só dessa forma e matar a pequena esperança que nasce em mim de cada vez que o vejo sorrir quando me conta algo que fez no seu dia. Descomprometimento. Tem de ser assim.

Já estou na porta de entrada quando lhe digo:

- É melhor veres isso, não vás ter pesadelos ao pé das tuas mulheres e elas assustarem-se.

Abro a porta e saio sem olhar para trás.

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Imagem: "Le Victoire" de René Magritte

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Vulnerável I

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