Vulnerável I - Pesadelo

A temperatura elevada não me faz querer cobrir o corpo. O verão traz as noites quentes e apesar de já estarmos em Setembro parece que continuamos em pleno mês de Agosto. Estou cansada e mole. A satisfação do início da noite deu-me o que era preciso para adormecer rapidamente, mas dormi poucas horas. Oiço o seu corpo que se mexe. É de madrugada, não preciso de abrir os olhos para o saber. Despertei, mas deixo-me ficar de olhos fechados na esperança de que o sono tome outra vez conta de mim.

A sua respiração está diferente. Abro os olhos a custo. A sua cabeça vira de um lado para o outro. Abro os olhos completamente. Não sei se o acorde. É mais do que certo que sonha. 

Fico atenta. Agora, já todo ele se move, o lençol enrola-se por baixo do seu corpo nu. Endireito-me um pouco e ajeito a camisola de alças que vesti antes de adormecer.

Som. Ele diz algo, mas no meio dos movimentos erráticos não lhe sai qualquer palavra percetível. Sinto um nó na garganta. Quero ajudá-lo, mas não sei o que fazer, talvez não devesse permitir que ele continue naquele estado de aflição. Não posso ter medo de o acordar, mas nunca o tinha visto agitado daquela forma.

A sua agitação faz com que ele vá descendo no colchão e, de repente, ergue-se e fica sentado no fundo da cama. Os seus pés tocam no chão. O seu corpo que há pouco parecia tomar conta de todo o espaço está agora reduzido a uma parte. A sua respiração está muito acelerada, é como se ele estivesse a ponto de ficar sem ar. Ele coloca as mãos na cama, apoiando-se, faz uma força tremenda, as veias parecem querer-lhe saltar dos braços. 

As suas costas nuas parecem ganhar uma nova luz. Estão suadas e noto como cada um dos seus músculos está tenso, cada um deles molda aquelas costas por onde costumo passar as minhas mãos de forma livre e dedicada. Num ímpeto, sento-me e lanço-me sobre elas. Abraço-as, a minha cara a elas encostada constata o suor visto pela luz da rua e o seu frio contrasta com o quente das minhas faces. Os meus braços alcançam o seu peito, consigo unir as minhas mãos e aperto-o. Nada digo e por alguns minutos isto não o acalma. Também a pele do seu peito está molhada de suor. Mas, não o largo. Ele também não faz qualquer movimento que me demonstre que quer que o solte ou que não se sente à vontade para receber este abraço. Deixo-me estar, com todas as minhas forças, o tempo que ele quiser.

É a guerra. A filha da puta da guerra. Tenho a certeza.

Não sei por quanto tempo ficamos assim até que sinto uma das suas mãos, em cima das minhas, no seu peito. Dou-lhe um beijo nas suas bonitas costas e desprendo-o. Enquanto espero para que ele me olhe, admiro agora a sua nuca, o seu cabelo preto, curto, também ele molhado. Não evito todas as perguntas que pairam na minha cabeça, que aparecem como nuvens que me enevoam o pensamento: o que será que sonhou? É recorrente? Se assim é, como não o tinha presenciado em todos os momentos em que estivemos juntos? O que ele vê? O que ele viu que não apaga da memória, que está lá perdido no seu inconsciente? O que lhe f-

- Estás bem?

As nuvens parecem desviar-se do meu pensamento e dos meus olhos. E vejo-o. Ali. Virado para mim, com uma expressão confusa... Não é confusa. É uma nova expressão que nunca tinha lhe tinha encontrado no rosto... Parece que está... É vulnerabilidade? Coloco a minha mão na sua face e, ao meu toque, ele olha-me nos olhos. É vulnerabilidade misturada com... com um terror que me tira qualquer capacidade de dissimular seja o que for.

- É melhor dormirmos - a sua voz grave ecoa no quarto.

- O que viste?

Num ápice, o seu olhar torna-se mais duro. Esta expressão eu já conheço e sei que, a partir daqui, não me dirá mais nada.

Ele desvia-se, levanta-se e veste as cuecas. O silêncio. Sempre o silêncio quando o assunto é a guerra. Tenho a certeza de que é a guerra. Tento agir com naturalidade e ajeito os lençóis. Ele regressa à cama, deita-se de barriga para cima. Sigo-o com o olhar... Apesar de querer saber o que se passa, aquela expressão vulnerável assombra-me. Eu não sei a forma certa de lhe perguntar... de o fazer falar. Raios! Ele não quer falar, é evidente. Puxo o lençol para lhe cobrir as pernas e aninho-me a seu lado.

Levanto os meus olhos e admiro o seu cabelo desgrenhado. Ele olha para o tecto, quieto, fazendo parecer que está longe. E, talvez esteja. Lá longe, onde alguns morreram para defender sabe-se lá o quê, onde ele esteve por demasiado tempo, para ver demasiada coisa.

Quero abraçá-lo por inteiro como quando fazemos amor para não mais ver aquela sua expressão aflita que me mostrou há pouco. Não sei se poderei tocar no seu braço, não por ter medo. Eu não tenho medo dele. Nunca tive, mesmo que por vezes me demonstrasse um lado demasiado impulsivo. Tenho medo daquela expressão no seu rosto. É o homem que conheço, mas com um rosto diferente.

Arrisco. Levemente, levo a minha mão ao seu braço frio. Ao meu toque, ele estremece levemente e pisca os olhos, como faz quando acorda. Suspiro. Dou um beijo no seu ombro e encosto o meu nariz à sua pele. Depois de algum tempo, ele, finalmente, levanta o braço e eu acabo por pousar a minha cabeça no seu peito, sentido como, quase automaticamente, ele me circunda as costas.

Não trocamos uma única palavra.

Não sei quando volto a adormecer.

Imagem: Pormenor da tela "Os Músicos" de Caravaggio.

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