Sempre - Na Terra Árida II


O quarto está quente. Afinal tudo aqui é quente. Já saberíamos que ia ser assim quando para aqui viemos, mas, mesmo assim, quisemos mudar.
Quisemos experimentar esta terra. Esta terra árida que nos aquece o corpo assim que nela pisamos.

Encosto a minha cabeça nos lençóis, que estão meio molhados. Uma leve brisa faz com que os cortinados dancem. Para quem não está habituado, não se consegue apreciar o calor desta simples brisa. Mas, para quem aqui está todo o ano, a frescura que nos dá é impossível de desperdiçar. Volto a fechar os olhos ao mesmo tempo que percebo que agora tudo está mais calmo. Forma-se um pequeno sorriso na minha face. Sinto-me sempre noutro lugar, longínquo, cada vez que estamos assim.

Sei que a sua respiração voltou ao normal. Permaneço de olhos fechados, mas sei que a calma regressou ao seu corpo. Novamente, a cama mexe. Já nos habituámos ao seu chiar. Foi a única que conseguimos arranjar quando aqui chegámos. E pensámos que não haveria problema. Afinal, viveríamos apenas os dois nesta casa. Não corríamos o risco de nos tornar inconvenientes com ninguém. Agora sinto como os seus dedos se entrelaçam nos meus caracóis… O toque dos seus dedos no meu cabelo é sempre único.
Não há nada igual.
Muitas vezes brincamos com isso. É como se não houvesse nada que o substituísse.
Como o sabor daquela comida que só encontramos num certo local. Muitos o fazem, mas naquele sítio, aquela comida terá sempre um sabor distinto.
É isso que o seu toque é. Distinto.
Enquanto ele se entretém com o meu cabelo, eu aproveito cada um daqueles gestos. Em silêncio, em total contemplação àquilo que ele é. Àquilo que ele me faz sentir.

“O teu cabelo está comprido”.
Sorrio e abro os meus olhos ”Que dizes? O meu cabelo sempre foi comprido...”
“Não. Não é isso. Está mais comprido... Está parecido com o delas... Cada vez estamos mais parecidos com eles”, ele constata. Sim. É inevitável não nos darmos conta disso.
“É verdade.” Concordo, tomando conta da sua expressão concentrada que segue os caracóis dos meus cabelos agora muito mais compridos o que antes. “Mas continuas a ser como eras…”
“Serei sempre eu”.
Noto como o seu olhar enterneceu com as minhas palavras e ele prossegue.
“Gosto disto, sabes? De estar aqui, livre, de ver tudo isto a crescer... Ou de simplesmente poder estar aqui, assim, a sentir esta brisa...”
“Só notas esta brisa pelo calor que aqui costuma estar. Só notamos as coisas belas porque sabemos o que é terrível.”
Ele para de me acariciar o cabelo.
“Sem dúvida.” Trocamos um beijo puro mas, ao mesmo tempo, sem limites.

A cama volta a chiar e ambos soltamos uma gargalhada. “Qualquer dia temos de pensar em trocar de cama...”, acabo por dizer.
“Ou então posso aprender a fazer uma”. Aceno devagar.
Coloco as minhas mãos sobre a sua face “e eu ajudar-te-ei”. Beijo-o novamente, descendo, depois, até ao seu pescoço “posso pedir ajuda aos mais velhos, eles saberão como o fazer”, ele sugere.
“Isso ou vamos passar a dormir no chão.”
“Desconfias dos meus dotes?” Ele finge alguma seriedade.
“Hum... És bom no campo, não sei se serás bom com madeiras”, tento acicatá-lo. Sei bem, como encara tudo como um desafio.
“Pois bem. Terás uma cama!” Ele diz com todo o empenho “Mas primeiro terei de os ajudar...”
Franzo o sobrolho.
“A quem?”
Ele dá-me um beijo na face e senta-se na cama, à minha frente, encostando-se na cabeceira.
Admiro-o. O seu corpo suado, o cabelo molhado e a sua face ruborizada, acende sempre algo em mim que me faz querer ficar ali para a eternidade.
“Os miúdos. Os miúdos precisam de instrumentos. Vou ajudar os mais velhos com as guitarras...”
Pego no lençol e cubro a parte da frente do meu corpo. “Alguma vez fizeste uma guitarra?”
“Não”, ele diz sem hesitar. Agora sim volto a sorrir com todas as evidências. “Acho óptimo!”
“Sim. Estou entusiasmado. Estou habituado a tocar, não a criar o próprio instrumento, sabes?”
Apoio-me nos meus cotovelos e vejo como aquela simples perspectiva de construir algo o deixa com um olhar tão mais cativante.
“Estamos cada vez mais iguais a este povo”.
Ele apenas acena e debruça-se sobre mim, deitando-se ao longo do meu corpo “e não sabes como me sinto feliz com isso.”
Abraço-o, sentido a sua pele ainda molhada “é tudo tão diferente... Genuíno, não sei” ele beija-me “doce...”
“Harmonioso...” e, novamente, noto como os seus olhos brilham.
“Como uma verdadeira canção”, ele completa. Aguardo para que ele me explique o que está a sentir. “Uma canção doce, mas, ao mesmo tempo, que nos arrebata. Assim é esta terra.”
Roço os meus lábios na sua barba, sentindo aquele seu fio no meu peito, tal como sempre acontece quando fazemos amor.
“Isso é uma obra de arte... Colocar numa canção toda esta terra...” Passeio as mãos pelos seus braços, agora morenos do sol que apanhamos todo o dia “uma terra suave, mas árida...” passo pelas marcas do seu rosto... Aquela marca debaixo do seu olho esquerdo “árida como as marcas da pele”.
Novamente, ele entrelaça os seus dedos com o meu cabelo “suave como a brisa que entra agora no quarto...”. Sobreponho a minha perna à sua “arrebatadora por aquilo que é. Esmagadora por aquilo que nos faz sentir, como se nunca bastasse” sussurro no seu ouvido.
“Única como aquilo que é. Sem nada que a possa igualar...” o seu olhar azul prende-se no meu castanho “com recantos que apenas nós conhecemos…”
“Cheia de lugares secretos…”
“Com palavras que só nós entendemos”.
“Faz-nos sentir apenas e só” ele encosta o seu nariz ao meu “amor”, completamos em uníssono.

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Apressadamente, antes que seja a hora certa de ir para o recinto, coloco a roupa que acabei de apanhar na sala da senhora mais velha. Sei bem que não me diria nada por não o fazer com a ideia de o ir ver ao recinto, mas, mesmo assim, quero que ela perceba que poderá sempre contar comigo. Dou-lhe um beijo e peço-lhe para ir ter comigo ao recinto mais tarde. De certo que ela irá gostar da música e da forma como os miúdos correm despreocupadamente por aquela terra.

Assim que coloco o pé fora de casa, noto uma brisa diferente… Daquelas que nos mostra que a chuva está para breve. Dirijo-me até ao recinto sem estar preocupada com isso. Aqui é assim: chova ou não, ninguém deixa de tocar ao final do dia. Não nos importamos com molhar os pés ou a cabeça.

Estou já perto quando oiço mais do que uma guitarra. Será que… Será que já está? Vislumbro-os ao longe. Como ele se distingue de tudo o resto...

Assim que estou no recinto sinto uma gota de água sobre a minha pele. Estará mesmo…? Olho em volta e noto agora como as pingas caem no solo seco. Não sei porquê não consigo parar de sorrir e o meu olhar tenta encontrar o do homem que está sempre comigo. Encontro-o. Por certo, ele também estaria à minha procura e, assim, nos vemos por completo. A sua camisa branca de linho está já meia aberta, as calças largas meio sujas com o pó da terra. Hoje há algo de diferente nele. Ele apenas me acena e pega numa guitarra. Finalmente, consigo olhar à sua volta e reparo que existe mais uma guitarra do que o habitual. Ele começa a tocar. Está completamente desafinada, por Deus! Mas ele e os mais velhos riem. Riem como eu não ouvia há algum tempo e a chuva cai, agora de forma mais certa, como se cumprisse o ritual de séculos.

Sem estar à espera, uma mão pequena pega na minha e olho para baixo.
“O senhor… O senhor fez aquela guitarra!”
Os olhos da criança brilham ao dar-me a notícia, apontando para ele. Aceno “Vamos vê-la?”
O miúdo encolhe os braços “eu já a vi. E vou tocar nela”, o pequeno leva-me até mais perto do grupo de homens para depois me deixar lá sozinha. A criança acaba por ficar ao pé de um mais velho.

“Vês?” A sua voz inconfundível... O homem que ainda há dias sonhava com a guitarra, mostra agora
a concretização material desse sonho “agora é só preciso afinar e já está!”.
Não sei o que é mais belo. O facto de ele ter feito aquela guitarra com as suas próprias mãos, se as crianças vão agora ter a oportunidade de aprender a tocar ou todo o cenário que nos rodeia, com a chuva que cai ao mesmo tempo que o povo se junta para ali estar um pouco do seu final de tarde à espera de ouvir algo que os console, que lhes dê alento e que os divirta.

Estendo a minha mão e ele sorri-me. Entrega a guitarra ao mais velho do seu lado direito que, prontamente, tenta afiná-la. Ele dá alguns passos e pega na minha mão. Surpreende-me como é que a sua pele pode estar ainda tão macia, mesmo depois do trabalho diário dedicado ao campo.
“Concede-me esta dança à chuva?” Pergunto-lhe no meio de um sorriso.
Devagar, como se calculasse todos os seus gestos, a sua mão sobre até ao meu antebraço, levando a sua testa à minha.
“Sempre”.
As suas mãos regressam à minha cintura e eu pego numa das pontas da minha saia branca comprida. Hoje a terra não queima a planta dos meus pés… Hoje a terra árida tornou-se um pouco mais mole. Mas isto não muda.
Esta nossa presença é igual.
Sempre.

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NOTA: este pequeno conto pode ser lido em continuação deste: Na Terra Árida.

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