Na Terra Árida


Na terra árida, a luz do final do dia ilumina todos aqueles que ali estão. Os finais de tarde naquele lugar foram sempre assim: o cansaço de quem chega desaparece mais não seja pelos acordes que se ouvem um pouco por todo o lado. Aquele toque que nos faz regressar àquilo que dizem ser as nossas origens. O nosso corpo ganha uma outra forma através de uma vontade que não conseguimos controlar. E aí já não há mais a fazer sem ser dar-lhe todo o poder. 

Ponho um pé perto do círculo do recinto. A areia ainda está quente, fazendo com que não me seja de todo fácil seguir. Os meus pés ainda não estão tão calejados como os dos outros, ainda sinto a grande diferença de temperatura. Mas, a pouco e pouco, vou seguindo. Um pé à frente do outro. Ao mesmo tempo olho para o lado e vejo como os mais pequenos correm por ali descalços, sem saber que ali estão o mais livres possível. Sorrio. Sorrio sempre que os vejo. Não sei se é por também eles se estarem a rir… aquelas gargalhadas são irresistíveis.

E aí estou. Com pequenos passos cheguei ao centro daquela terra que me apaixona... O som da guitarra torna-se cada vez mais forte. Não admira. Já não é apenas uma. São mais. São várias as guitarras que agora chegam. Como sempre acontece por volta desta hora... As minhas ancas começam a mover-se e a saia comprida que trago também se começa a mexer. A razão não é só por estar a dançar, é também aquela suave brisa que nos remexe, fazendo com que os movimentos do nosso corpo se multipliquem.

Fecho os olhos. Agora junta-se o acordeão. Bem. E que falta estava a fazer para os djambés que agora também ressoam. Continuo a dançar ditada por aquilo que oiço e sinto, não por aquilo que sei. Apenas deixo-me levar por tudo aquilo que esta terra árida, estas pessoas me provocam. Os homens com a pele tórrida do sol, de camisa meio aberta, marcados pela dureza do dia a dia, mas que, agora, se esquecem do pão pelo qual têm de trabalhar para dar aos seus filhos. Ou as mulheres, com o seu ar imponente, de saias compridas e saltos altos, mostrando que todas as dificuldades por que passam não foram suficientes para lhes tirar a beleza. 

Abro os olhos e vejo como de repente o recinto está cheio. Sorrio. Elevo as minhas mãos ao meu cabelo ouvido com atenção a letra daquela canção que nos faz sonhar e continuo a deixar que o meu corpo tome conta da mente.

“Posso?”
Hum… A sua voz é única.

Olho-o e não consigo deixar de sorrir. Ele sabe que o estou a convidar. Ele coloca as suas mãos, que escondem uma delicadeza que só eu conheço, na minha cintura.

“Comecei sem ti…” Sussurro. Surpreendentemente, e apesar de toda a música que se ouve, ele ouve-me. Como sempre. Apesar de tudo, ele escuta-me sempre.

“Sabes como eu gosto de te ver aqui” Ah. Afinal ele já tinha chegado. Dou uma leve gargalhada e coloco as minhas mãos sobre as suas. A sua boca junto ao meu pescoço. O meu corpo colado ao seu, dois corpos que seguem a melodia que os circunda.

“Tu e essa mania de me olhar”.
“Mania não. Dever”. Os seus lábios tocam na minha orelha e estremeço. Tenho a sensação de que cada vez menos gente está à nossa volta.

Rapidamente, ele coloca-se à minha frente. O seu cabelo loiro desgrenhado mostra-me que acabou a labuta. Mas, também como sempre, o azul dos seus olhos capta tudo aquilo que sou.

Levo uma das minhas mãos ao seu rosto, a barba que me pica os dedos faz com que desvie o meu olhar para a sua face. As marcas do sol já se fazem notar na sua tez clara, que, aos poucos, está a mudar.
“Sim. Já se nota...” Ele diz e eu aceno.
“Fica-te bem…”
Ele sorri de forma desajeitada. Nunca soube aceitar um elogio. “É o trabalho”.
Aceno, novamente “sim, sim…” aproximo-me ainda mais, sentindo-o cada vez mais junto de mim “mas fica-te bem à mesma…” e beijo-o. Beijo-o porque tudo me leva a fazê-lo, principalmente a nossa realidade. Porque, acima de tudo, é ele. E, afinal, é o cumprir daquilo que estabelecemos tacitamente assim que chegámos a esta terra árida. No final do dia, saberíamos onde sempre nos encontrar... Neste pedaço de terra, que apenas ganha alguma cor quando quase todos os habitantes aqui se reúnem. Onde todos se juntam para celebrar o fim de mais uma jornada de trabalho, para estar com amigos, para brincar, para estar com quem amam. Para viver. No fundo é isso. Aqui é onde se vive. Nestes pequenos momentos.

Ainda com os lábios junto aos seus, ele faz-me rodopiar e só me consigo rir. Desfaço-me do seu abraço por um instante.
Sim.
Apenas por um instante.
Logo de seguida, ele volta a reclamar a minha presença para si. O fio que traz sempre consigo dança no seu peito ao mesmo tempo que ele me agarra de volta. E tenho a sensação de que estamos sozinhos. É estranho porque as canções parecem cada vez mais presentes e posso jurar que alguém começou a cantar.
 
Mas todo ele não me permite perceber o que está a acontecer. Apenas me permite perder-me no seu olhar outra vez, naquela paz que sempre me transmite. Como se nada mais existisse que me completasse. E, na realidade, nada há mais no mundo que me faça saber onde estou. Apenas e só aquilo que por ele sinto e que nunca senti por ninguém. Apenas e só aquele olhar que sempre me disse muito mais do que as suas palavras.

Subitamente, sinto algo contra a minha perna e olho para baixo.
“Desculpe!” diz o pequeno que recomeça a correr por todo o recinto. Agora entendo que, afinal, não estávamos sozinhos. Muito pelo contrário. Há cada vez mais gente a chegar. As crianças continuam livres e felizes. Como seria se - “um dia”, diz ele. Volto a admirá-lo e concordo “um dia”. Sorrimos. Não é preciso dizer mais nada.

Agora a música é mais calma, e sinto como os seus braços me envolvem de novo. Assim o faço também. Há algo que existe em todos os seus abraços que eu não consigo classificar. Devagarinho, como se cada acorde fosse para ser sentido individualmente, damos alguns passos ao sabor daquilo que ouvimos.
“Que sorte tivemos em encontrar este sítio…”, o seu tom grave, rouco, mas tão vivo, ressoa junto a mim.
Aceno, a minha cabeça junto ao seu peito. “A melhor coisa alguma vez fizemos”.




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